domingo, 4 de setembro de 2016

Agostinho - Abre-te Sésamo

Virou costas ao pátio naquele final de tarde cálido. Parecia-lhe até que esfriava. Sentia-se defraudado com o que acabara por não ver. Achou-se desajeitado no seu jeito de curioso sem remédio e castigava-se trazendo à lembrança outras situações mal sucedidas.

A caminho da camarata recordava um episódio dos seus dez anos, um dos poucos registos que não deixara qualquer mágoa, apenas umas quantas areias nos olhos, um raspanete com sotaque brasileiro e a perda de alguns sabores de Verão. Talvez por isso fosse a lembrança eleita. Era inocente, inócua, até reparadora.

Esse Domingo tinha sido um dia invulgarmente feliz. Passado “entre as mulheres”, mãe, irmã, uma tia brasileira e as primas. Em boa verdade a tia era portuguesa, emigrara há muito para o Brasil, lá casara e nesse ano viera rever a família. Trazia as filhas já crescidas, essas sim, bem brasileiras no sentido mais visual do termo. Lembrava-se, apesar de ainda ser puto na altura, que as achava mesmo boazonas. Olhava para elas e tinha a vertigem de entrar nas imagens televisivas do Carnaval do Rio, com moças bronzeadas bem descascadas, grandes decotes, brutas mini saias ou calções generosos no que deixam por cobrir. Agora à distância parecia-lhe que talvez fosse fantasia sua de miúdo, acentuar a imagem das primas com todo um colorido e sensualidade a que simplesmente não estava familiarizado. Talvez até fossem miúdas mais ou menos banais.

Por uma coincidência feliz, o pai tinha um jogo de futebol imperdível e a tia tinha-os convidado para um dia na praia de Espinho, com direito a barraca alugada, o que para si era coisa de gente fina. No final da manhã, antes dos preparativos do farnel, a canalha foi ao banho. Primeiro ouviram-se muitos “ai…ui ”, que as águas do mesmo Atlântico não são desta banda aquelas a que as primas estavam habituadas. Nada que não se resolvesse rapidamente com umas quantas chapinadelas e um valente chapão do primo. As raparigas ficaram tão ensopadas quanto determinadas a mergulhar de seguida. Demorou pouco o banho, as moças saíram queixosas de que a água cortava os ossos, tratando de correr para a barraca para se secarem e trocarem de biquíni. Não era o caso da irmã, que tinha apenas um que pedira emprestado a uma amiga. Tinha vergonha do seu velho fato de banho puído, esticado pelos anos e pela força do seu corpo que largara a menina e já se vestira de mulher. O que faltava a uma, as outras tinham em excesso, sob o pretexto de estarem sempre enxutas.

Agostinho pensava que os biquínis eram tão reduzidos que logo logo secariam. As primas queriam era dar no olho, exibir outro estampado, deixar mais qualquer coisa em evidência…

Enxutas o caraças! A porem os gajos malucos, isso sim.

O priminho, apesar dos seus dez anos, não se deixava iludir com floreados tropicais, exíguos mas ainda assim dispensáveis para quem espreitava uma nesga de oportunidade. Naquele momento as primas e a irmã tinham baixado o toldo da barraca. Com jeito e à socapa, ele poderia embevecer-se com o corpo desnudado das raparigas já mulheres, nos seus esplendorosos 14, 16 e 17 anos. Assegurou-se que a mãe e a tia estavam sentadas mais à frente, viradas para o mar a tricotar conversas. Deu meia volta à barraca, aliviou cuidadosamente a areia sobreposta na banda terminal da cobertura de pano e levantou-a um pouco para mergulhar a cabeça e então saborear o fruto proibido.

Estava mesmo a pedi-las. A primeira rapariga a dar-se conta chutou impulsivamente um pedaço de areia e o voyeur acabou aos saltos e aos berros, num alarido que despertou todas as atenções.

-Que é isso seu Agostinho? Não tem nada q`espreitar às mininas! - ralhou a tia no seu português abrasileirado, enquanto a mãe o interrogava com um olhar de reprensão. Foi a ela que ele respondeu, com a confirmação do que tentava negar.

- Eu não as  estava a espreitar minha mãe, apenas a ver o que elas faziam!...

Na ausência do pai, o castigo apenas teve o amargo de boca de ficar sem o gelado da OLÁ e a língua da sogra a que “às mininas” tiveram direito. Neste último caso custou-lhe menos. Nem conhecia o sabor e o nome lembrava-lhe as palavras envenenadas que ouvia do pai contra a avó materna, pelo que se resignava com a ideia de não estar a perder grande coisa. Já ficar sem o seu predileto Perna de Pau, enquanto as moças mordiam e lambiam cornetos, deixou-o por momentos, amputado.

Algures no Alentejo, nesta tarde de sexta-feira, Agostinho resolvera espreitar a chegada da miúda que vinha do Porto e o pontapé de areia que apanhou foi ter-lhe saído um guna.

Mais uma vez fizeste bosta Agostinho! Já devias ter aprendido a olhar pela tua vida sem andares a espreitar a dos outros. Agora perdes a saída à vila, parte da mesada e curtiste bué. Ficas mas é a bater mal...

A chegada de um novo residente deixara de ser do seu interesse e Agostinho desmobilizara. Cabisbaixo, dirigiu-se aos balneários para se confinar à rotina da higiene de final de dia, antes do jantar. Mas o pensamento não lhe deu tréguas.

Às tantas inda vais gramar com o guna na tua camarata. Até estava a ficar fixe desde que o sacana do Alex basou daqui. Mania que mandava em tudo e todos, a exibir os peitorais  tatuados e a trabalhar p´ró músculo p´ra intimidar… e tu, “o banhas”, o “Michelin”, consoante a inspiração do tipo, ou lhe fazias as vontades ou lerpavas. Mas o gajo que chegou pareceu-me um guna de merda, com tamanho de gaja. Tenho é que lhe falar logo de alto p´ró acagaçar  e impor a lei dos mais velhos. Pelo menos há mais tempo aqui. Fazes-te ao gajo em força, como te fizeram a ti. Tá-se bem. Tenho pena, é o que um tipo aprende nestas espeluncas.

O pensamento ia azedando enquanto tomava banho. E o jorro de água apenas morno e pouco determinado  remetia-o para o chuveiro improvisado do anexo de sua casa e de novo as lembranças como pingas soltas, pesadas.

- Agostinho,  despacha-te moço! Se o teu pai chega e dá c´o  depósito sem água, enche-nos de porrada! Olha que hoje é dia do patrão lhe dar a féria, à vinda desvia-se pela tasca e sabes no que dá, não sabes? Ele desgraça-nos filho, despacha-te!

E as memórias faziam-no desligar o chuveiro e largar o banho. De momento não tinha o Alex para o arrancar de lá, só porque sim, p´ra chatear a mona, impor respeito, mania que era o maior, sacana de merda, basou, inda bem e nem sequer o invejo. Deve andar pr´aí a monte, morto de sede como um cão vadio.

Agostinho encontrara forma de varrer o pai da mente ocupando-a com um substituto menos nefasto. Pelo menos o estupor do Alex não constituía perigo para a sua mãe. Ausente da instituição era suportável  tê-lo presente na ideia.

Mas não controlava a intermitência do seu pensamento e tropeçou de novo no pai. Em boa verdade o velho continuaria a infernizar a mãe, talvez apenas mais moderado na forma. Afinal não o tinha a ele em casa como pretexto para armar desacato, perder as estribeiras e pegar no cinto para dar coça da feia, daquela que dói, mais ainda na alma que no corpo. E o corpo ficava bem marcado. A mãe acorria para proteger o rapaz e apanhava por tabela ou sem o ser. A irmã é que fizera bem, cansou-se e fugiu com o namorado para a Suíça. Nessa altura a mãe passou mal, foi um imenso desgosto. Como se não bastasse ficar sem a sua menina que era também o seu braço direito e seu amparo, ainda tinha o marido a cobrar-lhe o sucedido.

- A mãezinha dava sempre os améns à menina, olha como te agradeceu!... Uma  ingrata, é o que é!

Na sua resiliência, a mãe lá foi remendando aquele rasgão da vida como pôde. Aprendeu a coser a alma com o fio grosseiro do alívio; a filha já não apanharia por acorrer em sua defesa ou do irmão, que a moça tinha fibra. Rapariga discreta e humilde, mas inteligente e determinada. Era a única a enfrentar a besta, oh se era! E a mãe, dividida na ambivalência do desgosto e do orgulho, acabava por se fortalecer. No íntimo desejava ter sido como a filha, ter tido a mesma coragem nos seus tempos de menina e moça. Mas nesses tempos, crescimento e pensamento eram formatados por espartilhos machistas bem aperreados. Agora estava cansada e velha.

Agostinho também almejava ter a coragem da irmã. Apesar de sete anos mais novo, sentia que devia ser ele a exibir atributos de bravura do género masculino, ficando a corroer-se numa certa cobardia. Era como se uma acidez lhe fosse consumindo a alma. A mãe sempre pusera água na fervura, incutindo nos filhos mais do que tolerância, subordinação. Fracassara redondamente com a mais velha. O mais novo crescia, “botava corpo”, mas parecia aquietado. Sem que se visse, medrava nele um cartucho explosivo de emoções. A submissão ao pai ia-se distendendo, retorcendo, transfigurava-se; ele próprio tinha dificuldade em admitir que o que sentia era ódio pelo agressor e revolta pelo laço familiar imposto pelo destino.

Um dia, por fim, Agostinho percebeu. Qual laço qual nada, aquilo era um nó de garrote que os sufocava, lhes roubava o direito a indignarem-se, sequer a sorrir. Nesse dia começou por implorar ao pai que parasse de insultar e de polear a mãe. O pai continuou a escancarar armários e a arremessar as panelas em todas as direções. A alma do rapaz decidiu “botar corpo”, o corpo ganhou alma e empoderou a voz num confronto imprevisto em que ele era mais ele ou mais outro. Um tal capaz de enfrentar o pai e de lhe dizer que faria queixa à polícia caso não parasse. O homem embrutecido pelo álcool nem percebeu o que tinha mudado. Continuou a abrir e a desventrar as gavetas na cegueira de agarrar a única faca de cozinha que havia lá em casa e que a mulher religiosamente guardava em sítios diferentes, à cautela de momentos como aquele. Não fosse o destino transformar aquela faca numa arma letal.

Entre a dúvida de deixar a mãe naquelas circunstâncias e a determinação do que dissera ao agressor, Agostinho fez a escolha e saiu de casa aos berros, como se fosse uma sirene. Enquanto galgava as ruas, berrava aos quatro ventos para acudirem, até que chegou ao posto da GNR. Pela primeira vez deixou à porta o medo sufocante que até então o amarrara e tolhera. Arrancou a camisa de forças que o impedia de crescer. Entrou possuído pelo ódio e pela revolta e saiu a sentir-se nu, como que envolto numa imensa bandeira branca de libertação e de paz. Estava feito. Tinha perdido a cabeça voltando a ganhá-la. Tinha crescido, tomava consciência e assumia.

Não hás-de ficar sempre a rir-te de nós, bêbado covarde, cabrão! Deixei de ter medo, ouviste? Ouviste?

- Ouviste a novidade? Oh pá, Agostinho, já sabes das últimas?

 Um parceiro de camarata chamava-o para o ali e agora.

- Chegou uma miúda nova do Porto!

Agostinho estava longe daquele monte Alentejano.

-Ouviste, ou tás mouco meu? É preciso soletrar: Ga-ja no-va, do Por-to…

- Gajo.

- És mesmo Tinhoso pá!

Desvalorizando a informação, Agostinho sintonizou o pensamento na alcunha que lhe coubera. Vistas bem as coisas, até andara com sorte. “Tinhoso” derivara de Agostinho - tinho, deturpado e desclassificado até Tinhoso. Mas isso desviara as atenções da fatal associação da alcunha ao físico, o que o libertara  do “Banhas” ou “Michelin”. Assim a sua auto-estima, muito pouco insuflada precisamente por uns quantos pneus flácidos, escusava de levar em cheio e a toda a hora com o rombo da alcunha. Claro que outro estatuto, melhor dizendo outro poder, tinha o evadido “Alex”. Estava mesmo a ver-se que esse tinha imposto um diminutivo do seu próprio nome e ainda se dava ao luxo de acrescentar “ Alex ou Alexandre o grande, nos momentos mais solenes”. E quando o dizia, sentia-se na obrigação de dar uma curta aula de história para avivar a memória dos mais esquecidos ou inferiorizar “os mais estúpidos que não aprenderam uma porra na escola.” O parceiro de camarata que agora o chamava, também fora bafejado por alguma sorte. Tinha uma alcunha que derivava do nome e do facto de ser loiro, sem desvios ou originalidade. Alguém dissera:

-  Oh pá, o gajo é Rui e é russo. É de caras, fica Ruisso!

E os demais, à falta de melhor, acataram aquela ausência de inspiração. Claro que depois, alguém descobriu com o uso umas quantas variantes também pouco criativas.

- Ruisso! Rui-isso, Rui-aquilo, ao quilo ou à grama, meu?

E a conversa derivava para desejos ou memórias de manobras clandestinas com drogas.

E o “Ruisso” voltava à carga:

- Dás-te à cena de faltar à sessão do doctor, e inda por cima pões em causa a informação aqui do mois-je? Fica sabendo que a chavala tem apenas catorze aninhos. Na sessão de grupo a que mister Tinhoso se deu ao luxo de faltar, o sr. doutor psicólogo  pediu  freio nos cavalos para a miúda não ser logo atropelada… Inda por cima fim de semana, doutores ausentes… Bora lá Agostinho, se te despachares podemos ser os primeiros a chegar ao refeitório, topamos a miúda e marcamos posição antes dos outros.

Agostinho fazia agora um esforço por cruzar a informação que lhe chegava do parceiro, com a imagem recente da chegada a que assistira.

- Oh pá, oh Ruisso, eu  estava no pátio e vi o gajo a chegar, pareceu-me um guna de merda.

- Sabes que te digo? O terapeuta é que tem razão, meu: tás mesmo a precisar de ir ao médico dos olhos. Andas mesmo a ver mal. Inda vais virar caixa d´óculos, para além de gordo. Vá,  não disse nada. Anda mas é daí Tinhoso!

No caminho para o refeitório os dois rapazes trocaram mais algumas impressões sobre a visão de Agostinho que já se dava por desenganado quanto à sua capacidade de ver ao longe. Mas naquele momento isso passara a ser secundário. Sobrepunha-se a ansiedade de corrigir a impressão havida, através do contacto direto com uma miúda nova e isso estava prestes a acontecer. Agostinho percebeu que uma batida acelerada do seu coração se antecipava ao ritmo da passada. O pensamento voltava a segredar-lhe conjeturas.

Não tens emenda, já estuporaste o fim de semana, agora tás todo excitado. Como dizia o teu avozinho, só por um "rabo de saias". Quer dizer, se tiver tirado as calças de guna… pela amostra sai-te é uma gaja asquerosa e ficas na bosta.

E passaram a porta do refeitório. A Assistente Social tinha ficado para acompanhar as primeiras horas de acolhimento da nova residente e estava com ela para a apresentar ao grupo antes do jantar. A jovem estava a ler a ementa afixada no quadro informativo ao fundo da cantina.

- Ora bolas, afinal oh Ruisso, os primeiros a marcar posição… com a AS no encalce da miúda…

- E eu ia adivinhar que a Doutorinha ficava p´ro jantar, numa sexta-feira?…

Chegara o momento, mas de forma bem distinta da que os dois rapazes tinham imaginado, com o enquadramento da técnica a mediar as apresentações.

- Agostinho e Rui, já que são os primeiros a chegar venham cá. Como vos tenho por bons rapazes, vou incumbir-vos do acolhimento da vossa nova colega aqui no refeitório. Tânia podes chegar aqui, por favor?

Tânia foi-se aproximando. Usava as mesmas calças de guna que Agostinho tinha visualizado ao longe. Com uma mão encafuada num bolso, a outra já sem o boné que segurava quando saira do carro da polícia que a levara até ali. Andar gingão. Uma das sobrancelhas tinha-se erguido como que a marcar a guarda de um olhar supostamente superior e desconfiado.

- Tânia, apresento-te o Agostinho e o Rui. Podes ficar tranquila que eles vão ser os teus guarda-costas deste fim de semana e se o digo é porque posso confiar, não é assim rapazes?

Tânia por um curto instante libertou a sobrancelha, esboçou um quase sorriso, mas logo se protegeu num vergar de tronco e baixando a cabeça.

Para os rapazes não parecia nada evidente que Tânia precisasse de guarda-costas. Estavam tramados, isso sim, virara-se o feitiço contra o feiticeiro. Era o que lhes faltava terem que ser ama seca de um guna em versão feminina. Tinham perdido a pica toda. Que era gaja era, mas dúbia. Ainda por cima tinham sido empossados de betinhos anfitriões. Valeu-lhes a chegada de uma tal de Sara, brasuca despachadona que reclamou a missão do acolhimento. Argumentou com a pertença à mesma camarata, experiência e provas dadas em anteriores receções, não se poupando no que lhe era mais característico: uma gesticulação tão hiperativa quanto ela, que esgotava qualquer mortal só de assistir. Pelas vinte horas de uma sexta-feira, a assistente social não tencionava debater-se com todo aquele voluntarismo, ainda mais que já salvaguardara o que pretendia, pôr tento nas duas feras que se tinham revelado mais assanhadas no conhecimento da nova presa. Não contrariando a iniciativa da intensa Sara, enfatizou o papel dos dois rapazes ali presentes no controlo do setor masculino. Agostinho e Rui podiam descomprimir, a tarefa estava atenuada. Também como não se tratava de uma gaja boa, o nível de alerta baixava.

Após o jantar, já a Assistente Social tinha ido embora, os comentários entre as raparigas iam no mesmo sentido. Queixavam-se de barriga cheia, por ter chegado uma “machona” do Porto; parecia-lhes esquisito, por ali era novidade. A vantagem seria não pôr em risco o tabuleiro de xadrez das seduções e namoricos  ao momento.

- Eles não vêm nada na gaja e ela não quer nada com eles. Pode é chagar-nos a mona por querer brincadeira connosco. Tá-se bem, leva logo uma lambada que vai parar ao Porto mais depressa do que se pôs aqui, mesmo com a sirene da bófia a abrir caminho!...

Numa das camaratas masculinas, já deitados e antes de adormecerem, Agostinho e Rui retomavam o assunto comentando o fiasco:

- Ouve lá Ruisso, eu posso estar a ver mal ao longe ou até não, porque de facto a gaja mais parece um gajo meu… mas tu é que não estás a ver népia ao perto. Então não topaste os olhos azuis da miúda?

Rui não se tinha apercebido.

- Ouve lá, a miúda é mesmo deslavada, nem ponta de maquilhagem meu. Sem as tintas  todas que as outras metem, aquela coisa preta em cima dos olhos, o eye não sei das quantas… se tem olhos azuis nem se topa. Só lhe vi uma sobrancelha com a gaja a armar-se em mauzão e a cabeça rapada  com crista de gunão. Olha até fiz verso … oh Tinhoso, vejamos o lado positivo desta cena: afinal vês mesmo bem, meu, não vais precisar d´óculos. Quanto ao resto, melhores dias virão, quero dizer, melhores gajas, miúdas boas. Boa noite!

E fechou a luz.

Agostinho fechou os olhos e voltou a abrir como quando era criança e o sono apertava, mas ele não queria perder pitada da história que a mãe lhe contava. Sabia que se fechasse os olhos era o “João Pestana” quem ganhava e ele perdia a magia daqueles contos do “Ali Babá e os quarenta ladrões”. A mãe dizia “Abre-te Sésamo…” e naquela noite de sexta-feira, no escuro daquele quarto perdido algures por Montes Alentejanos, Agostinho queria que essa mágica  acontecesse. 

- Lembras-te, meu filho, uma vez que fomos a uma praia com uns pedregulhos enormes, Lavadores… eras inda um fedelhito…

Agostinho não estava seguro se a imagem que guardava era lembrança ou fruto da imaginação espicaçada pelo conto.

- Sim mãe, um rochedo enorme…

E a pedra gigantesca inacreditavelmente parecia mover-se…

Aconteceu. Agostinho vislumbrou aquele breve instante em que Tânia baixara a guarda da sobrancelha, esboçara um quase sorriso e acendera duas luzes azuis que só ele tinha visto. Deleitado, voltava a abrir e a fechar os olhos provocando o golpe mágico de ver e rever esse momento. Queria perceber a intensidade daquele olhar. Não conseguia decifrar se era ténue e doce, se incendiário e provocador. Uma ou outra coisa o excitava, mas queria perceber. Primeiro era o golpe de sobrancelha que distraía, depois os lábios a prometerem um sorriso e logo a cabeça da miúda baixava resguardando as duas pedras preciosas. Tânia, Agostinho repetia o nome para si, apenas com o movimento da boca, em surdina, como que a testar o sabor que deixava…

Já não tinha dúvidas. Fora ele a apanhar a informação da chegada, a decidir faltar à sessão de grupo, toda aquela ansiedade, depois a baralhação do guna…. mas aquele furtivo olhar azul nem o espertalhaço do Ruisso cocara. Havia sim um tesouro escondido e só ele o sabia. Agostinho queria chegar àquelas duas safiras, seriam suas. E voltava a tentar.

Abre-te Sésamo…

Mais uma e outra vez, umas quantas até que adormeceu.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Tânia - Rosa ou espinho?

- Doutora, dê-me essa rosa!...

E o meu pensamento inebriou-se como sob efeito de um perfume. Pintou-se de verde esperança ou talvez de ilusão. A cor da rosa combina com ilusão… Seria aquela rosa uma espécie de código de acesso? O seu caule tinha ainda o calor de quem ma oferecera há momentos atrás e eu saboreava o gesto de carinho. Mas a adolescente que a pedia, mais com os olhos do que com as palavras, fazia-o com a intensidade de quem pede para sobreviver. E se aquela rosa enraizasse o vínculo com Tânia e assim florissem botões de confiança? Ou uma almejada tranquilidade…

Os três andares sólidos do edifício estremeciam e por toda a rua soavam ecos impensáveis de uma voz que pretendia ser temível. A voz projetava intenções em desalinho de uma adolescente intranquila. Cabelo rapado, crista central no topo do crânio, quem conhecera a versão feminina chorava os longos cabelos loiros. “ Tão bonitos que eram, como ela, com este rostinho perfeito e estes olhos tão azuis…” O traço inspirado da natureza que lhe esculpira o rosto sobrepunha-se ao visual de machona, mas o teor do comentário não a animava, bem pelo contrário; o azul dos olhos parecia incendiar-se de raiva e ela queria ser ele, olhando primeiro de soslaio, fitando depois com desprezo em busca de mais motivos de fúria.

- Doutora, quero ir lá fora cravar um cigarro. Eu bato mal sem cigarros. Vou-me passar se não arranjo tabaco!

E o tom subia num crescendo de ameaça, as portas eram abertas a pontapé, fechadas de supetão e o estrondo aliava-se à voz numa intenção pretensamente poderosa. Parecia querer deitar abaixo os três pisos do edificado.

Mas naquela manhã e na presença da rosa, a voz tinha a maciez de uma pétala.

- Dê-me essa rosa Doutora...

Seria Tânia seduzida por qualquer flor ou apenas por rosas? Porventura o gesto de replicar a oferta daquela flor me levaria a sensibilidades escondidas? A expectativa de ambas era intensa. A rosa seria sua.

Pediu-me um copo de água para dar de beber à flor. A seguir esperaria. A desejada rosa não era para si, não a levaria para o seu quarto, seria oferecida a outras mãos quando chegassem da escola. Tânia queria presentear aquela que desejava como namorada, selando o compromisso com uma flor. E o azul dos olhos acendia como se por paixão.

Ou por ciúme. O seu telemóvel telintou e um sms contou-lhe más novas. A alma deixou-se envenenar e num instante Tânia resvalava, precipitando-se num poço escuro de emoções. A voz engrossou para se fazer ouvida e do fundo chegava a blasfémia de uma dor de traição. Num gesto intempestivo o copo foi varrido e voou, quebrando-se no impacto com o chão. A rosa era arrancada do seu nicho protector e lançada sem dó para o caixote do lixo. Aí ficou, incrédula e ferida.

Para além do gesto, as palavras eram acutilantes. Projetavam-se como o copo e os estilhaços atingiam-nos o pensamento. Enraivecida, Tânia persistiu no seu jeito todo poderoso,  perdendo a noção do corpo adolescente e falível. Ao bater estrondosamente a porta esqueceu-se da mão, trilhou um dedo e todo aquele equívoco sufocou. Tânia chorava como uma criança pequena. A sobrancelha deixou de infernizar o azul da íris e este podia então ser apenas cor na aguarela de uns olhos chorosos.

Tanto equívoco em apenas catorze anos de existência. E aquela capa de suposto poder que de repente envergava, fustigava tudo e todos em redor. Deixava-me confusa. No lixo, a cor da rosa desmaiara. Na minha alma, a perplexidade apagava a ilusão.

Uma, outra e mais adolescentes viriam e todas seriam sujeitas ao olhar esfaimado de Tânia e ao seu crivo de predadora. Seguiam-se amores, desamores, ciúmes, raivas. Como se a inquietude tivesse cio.

Fragilizada, por vezes parecia querer libertar-se daquela fantasia esgotante de poder, prometendo ser apenas adolescente. Telefonava ao padrinho, inventava um desejo próprio da idade e pedia dinheiro para gomas, um gelado, um lanche no MacDonald's, e esperava que o peixe ferrasse o isco. O padrinho esforçava-se em manter a ligação, mesmo que por um fio de mentira.

Mas as promessas duravam o tempo de um cigarro, consumiam-se com a nicotina. O padrinho  cansou-se, cortou o fio e Tânia ficou mais à deriva. Privada de tabaco, flipava e fugia. Na rua haveria de pintar o azul dos olhos com mais ou menos cumplicidade, mais ou menos sedução, cravando tabaco ou droga.

- Só cravo tabaco. Ganza é com uns connects que eu tenho, mas não é para mim, é pr´ós meus amigos lá do bairro…

- Amigos Tânia? Ricos amigos de Peniche.

- Posh, sei lá onde isso fica!

E o azul de vidrado brilhante alertava. No laboratório de análises a colheita haveria de  confirmar. Tânia era refém de catorze anos de equívocos familiares e apesar da negação, embrulhava-se na mesma teia de dependências que consumira os progenitores. Tinha que ser resgatada dos connects que julgava possuir e a possuíam. Teria que ir para bem longe da cidade e da imagem que esta lhe projetava de si mesma.

As outras bem a avisavam que andava a pisar o risco e que de repente acordava um dia com a bófia no quarto para a levar. Nem teria tempo de saber para onde, até podia ir parar às ilhas. E então como fugiria? Tânia sacudia-se na sua capa, querendo parecer pouco ou nada temerosa.

Até que o dia chegou.

Chegavam ao pátio as fragrâncias de um final de dia cálido em montes Alentejanos. Convidavam à evasão. Era sexta-feira e as atividades da semana estavam prestes a dar as despedidas. Quem dera a Agostinho ser ele a despedir-se da Comunidade onde estava há uns quantos meses.

- Fixe era agora dar de frosques e não ter que gramar a seca da dinâmica de grupo com o chibo do Psicólogo. Cenas em grupo, entrevistas, o tipo bem nos quer convencer que aquele paleio todo é “confidencial”, uma ova! Na volta está o manda chuva desta merda  a tramar-nos  com  bocas mafiosas,  castigos…  e a A.S., pouco cuscas essa também… não que façam mossa, até nem é o caso, mas por via das dúvidas, Agostinho, não confies em ninguém, muito menos em doutores. Tá-se bem ao pé deles é p´ra lhes apanhar conversas, sacar informações de interesse; e por pensar nisso, como é que ia deixando passar  “a chegada de uma adolescente do Porto na sexta à tarde”. Hoje é sexta, dizem que as gajas do Norte são boas, então as de Ermesinde…

Agostinho não fazia a menor ideia onde ficava Ermesinde, ou quem o tinha dito, mas aquilo vinha-lhe à cabeça e deixava o pensamento à solta; haveria de ser ele o primeiro a comê-la, quanto mais não fosse com os olhos, já que os sentidos estavam atiçados. Naquele final de dia e de semana, o corpo pedia-lhe mais. Sentia-se predisposto, se não a pular a cerca, pelo menos a pular fora de si e da rotina.

- Ia bem uma pinadela com uma miúda nova, mas logo no primeiro dia da gaja… flipava por um charro, mas não dá p´ra bazar daqui.

 Não se considerava um crânio, mas não se tinha por estúpido e sabia que para fugir era preciso um plano mais intelectual. Sentia-se com ganas mas isso não chegava.

A cena até pode ser bué da fixe: sou o primeiro a topar a chavala, trocamos uns olhares e quem sabe… com sorte, logo quando os monitores já roncarem … a miúda até pode ter trazido umas ganzas. Que se fodam os créditos negativos da semana, está decidido, fico aqui à espera.

Seria o primeiro a farejar a presa e a marcar território.

A quebra de luz do final de dia apagava o pátio, intensificando os cheiros e a expectativa. A sessão de grupo já era e teria que arcar com as consequências de ter faltado; mais um fim de semana sem ir à vila e provável redução na mesada.

- A gaja ainda não chegou e já me está a ir ao bolso.

Assim iam os pensamentos de Agostinho, quando a engrenagem enferrujada do imenso portão alentejano iniciou o seu lento cante, num compasso esforçado de abertura.

Abre-te Sésamo, e quase uma reminiscência feliz de contos que a mãe desenterrava da sua meninice. Mas já não havia tempo para nostalgia, estava empolgado com a entrada do carro da polícia e a chegada da nova residente.

- Mas o carro e os gajos não são da bófia… ah são dos que andam por aí sem farda e depois enfarda o pessoal  com a judite no lombo. É um vê se te avias ou, já foste! Finalmente, porra! Abram lá a porta e saquem da miúda, meus!

A uns quinze metros de distância, Agostinho observava, ansioso. Da porta traseira da viatura  saía uma figura de cabelo rapado, apenas um  tufo com gel a encristar-lhe o topo da cabeça, cap seguro numa mão, a outra metida num bolso das calças de ganga de gancho descaído.

- Calças à mijão. Flipei: é um guna! Foda-se, devo ter ouvido mal.

Tânia observava de soslaio e sobrolho carregado o recinto exterior da Instituição onde chegara naquele fim do mundo. Ecos das miúdas a bufarem-lhe que acabaria num desses campos de concentração de drogados, aturdiam-lhe a cabeça. Nem ouvia o que os agentes lhe diziam. Parecia ter perdido a sua capa de poder na viagem.

Por fora tentava com todas as forças manter uma das caras temíveis mais treinadas, como se fulminasse desprezo e ameaça em redor.


Por dentro mais um espinho irrompia, rasgando-lhe a alma. Tânia não podia chorar.

domingo, 3 de abril de 2016

Aurora - Como se tivessem apagado as luzes

À primeira vista julgar-se-ia que nos seus 43 anos de cegueira, estaria já habituada a estar “de luz apagada”…
Ainda era bebé de colo, quando os pais se aperceberam que aquela menina deles nascera desprovida do sentido da visão. Em contrapartida, Aurora fora dotada de um forte sentido de vida, plena de energia, ávida de exercitar toda a sua curiosidade e traquinice. Queria ver tudo o que podia ver e absorvia o que não vendo, resgatava pela alegria de lidar com as coisas simples do seu quotidiano rural, do convívio com novos e velhos, convencida no seu ingénuo entusiasmo, que os demais viam como ela e ela como os demais. Não percebia a noção de cegueira, pois se via o azul do céu casado com a montanha que acolhia a sua aldeia no regaço; se os caminhos empedrados que calcorreava e os campos onde brincava, soavam a chocalho e cheiravam a bosta de boi… Crescer era um jogo divertido, com provas que lhe desafiavam a atenção e o engenho - Senhora professora deixa-me ler agora a lição? - Enquanto na sala de aula outros colegas soletravam o texto, Aurora decorava-o e quando o tinha bem na ponta da língua, já se achava em condições de exibir os seus dotes de leitura. E a professora rendia-se à inteligência daquela aluna tão especial.
Todos gostavam da pequena Aurora e se mesmo sem o dizerem lamentavam a desgraça da sua cegueira, logo se animavam com a graça que brotava da sua alma e se espelhava no rosto de criança feliz. De traços miúdos e delicados, pintalgados de umas quantas, muitas sardas malandras, tinha um rosto para além de bonito, garoto. E os cabelos faziam o resto: revestidos de um brilho acobreado, saltitavam em milhentos caracóis que riam como a menina e com ela.
Tinha nove anos quando a família simples e humilde, atenta e aconselhada, se convenceu de que era chegada a hora; Aurora tinha que os deixar, submeter-se aos progressos da cidade, aos conhecimentos dos professores e doutores. Já numeroso, o rebanho familiar tresmalhava com o desvio e ausência daquela cabritita endiabrada, mas por seu bem. Por seu turno, Aurora entendeu que era um jogo novo em que seria a primeira a entrar – Primas! - O desafio: deixar os montes da sua aldeia, rasgar o horizonte rumo ao sol poente, descer com ele até ao mar e à cidade grande.
Viria a perceber que mais do que transpor os limites da sua pequena geografia, se tratava de apreender os seus limites enquanto cega, aprendendo numa escola especial funcionalidades para além da visão. Passou repetidamente a confrontar-se com o diagnóstico de “cegueira congénita total”. Total, porque os resíduos de visão que exibia não chegavam para ultrapassar a fasquia da visão nula na categorização médica. No entanto, em bom pormenor, uma palavrinha se impunha em acréscimo ao desalento do grau nulo e rematavam com “quase nulo”.
Um quase nada que fazia toda a diferença. Aquele reduzido domínio visual era tesouro seu. Permitia-lhe daí atingir o resto: abrir o baú das sensações e das lembranças e então encher um saco sem fundo de emoções. Era a achega que precisava para se sentir mais parte do todo e comentá-lo. E como ela, já adulta fazia questão disso! Tudo lhe servia para mostrar que não estava excluída do mundo dos que vêem. Melhor, Aurora pertencia ao universo daqueles que aceitam  os estímulos visuais como frutos. Colhem-nos e saboreiam…
Aurora gostava do riso e das crianças que cativava com espontâneas habilidades. Mesmo sendo suas desconhecidas, logo lhe aderiam numa serena cumplicidade de momentos bem partilhados. Adorava cantar e fazia-o no grupo folclórico da sua aldeia. Instalada na Invicta, sempre que podia viajava até à serra para fins de semana de retorno aos rituais simples do mundo rural da sua infância.
Amava a luz, ou não fosse o seu nome – Aurora - a luz de cada dia que começa e os seus olhos sequiosos dela. Não se cansava de elogiar a presença mais suave ou mais intensa do sol e de barafustar com a sua ausência, face ao cinzento dos dias enevoados ou chuvosos. Gostava da Primavera e das flores que lhe intensificavam os sentidos e em cada ano lhe renovavam as surpresas: a macieza das pétalas de magnólia nas pontas sensíveis dos seus dedos; a fragrância das lantanas a seduzir-lhe o olfacto namorador; o rei sol a trespassar a vidraça, desafiando aqueles olhos como súbditos para a luta, num esforço aguerrido de visão. Comentava o bonito e o gracioso num arranjo floral, numa peça decorativa, na combinação de peças de vestuário. Não era só pelo olhar apurado do tacto, era pelo seu olhar!
Nunca eu conseguira perceber até que ponto aquele seu olhar tão especial atingia a objectividade das coisas ou se lhe chegavam projectadas de dentro, da sua personalidade sensível e apurada. Até que subitamente o olhar de Aurora a traiu; a visão toldou-se e após semanas e meses de consecutivas consultas e de ensaios medicamentosos - Um filtro azul escuro, não é o azul do céu - lhe invadiu o horizonte visual, apagando-lhe a claridade e negando-lhe a diversidade.
Ainda que fosse definido como pouco, muito pouco na avaliação médica especializada, esse quase nada era muito. Era tudo para Aurora! Ver esse seu horizonte reduzido, ou seja, deixar de o ver, era então uma ameaça angustiante: o pesadelo de uma perda irreparável, irreversível. Esse olhar que agora a traía, resgatava-lhe a vitalidade, assustava-a e vinha apagando a sua natural alegria, mingando a sua participação. Calada no seu canto de trabalho junto à janela, parecia mais pequena e murchava como se de uma flor sem luz se tratasse.
Julgar-se que aos 43 anos estava habituada ao escuro, era engano. Incapacidade dos que fazendo pleno uso das respectivas capacidades visuais, não enxergavam que Aurora via o que dizia ver: formas vagas, cores e luz. Via-as na sua e na nossa realidade, na contingência dos seus olhos.
E agora Aurora?

- Agora… foi como se tivessem apagado as luzes!

domingo, 17 de janeiro de 2016

Cândida - O pássaro na mão

 “Cândida” não o era. Quando menina pequena poderia ter parecido um anjinho, como desses que caminham nas procissões por altura das festas religiosas: loirinhos, pele branca, olhos azuis. Só não teria cabelos aos caracóis, mas devia atrair a atenção pela sua cândida beleza, talvez não menos pela sua inquietude.

Que Cândida atraía, sabia-o bem. Não fosse pelos dotes físicos naturais, era pelo exagero da pintura atiçada nos olhos e nos lábios fartos, que dispensavam todo aquele encarnado do baton na sedução de machos famintos. Era bonita, mas a maquilhagem grosseira não o deixava perceber com clareza, indiciando um tipo de comportamento, sem que fosse preciso assistir ao jeito espalhafatoso do maneio ou expor os ouvidos aos desaforos do seu palavreado.

 A menina então crescida, fazia por ser provocadora de todas as formas possíveis e impensáveis, infringindo regras e brincando com o fogo. Uma vez fê-lo a sério; deu-lhe na veneta, desafiou uns quantos para testemunharem a façanha e ateou fogo a um pinhal próximo do seu bairro. Apenas um frasco de álcool e fósforos e a vontade de ver o circo a arder. Deu-lhe gozo o aparato dos bombeiros e todo aquele espectáculo ser obra sua - era fixe! Reduzir a cinzas uns quantos metros quadrados do pouco verde em avançada extinção na zona, não lhe tirava o sono. Estava habituada ao pinhal urbano onde habitava, uma plantação densa de torres, envergonhadas do colorido excessivo de origem e do desbotado actual, indecente. Envergonhadas as torres, Cândida não.


Quem queria ela chocar e porquê? Quem crucificar naquela, como em tantas outras provocações?

O pai só casualmente lhe ligava, mais dedicado ao vinho do que aos filhos (três raparigas e um rapaz, de permeio). De quando em vez lá se lembrava de a assediar com algumas moedas que Cândida aproveitava para desvarios e tabaco. Ela sabia o café da zona onde o cota parava e isso bastava-lhe para o usar como arma de arremesso, quando era seguro ser a mãe o alvo a atingir.

Joaquina, mulher grande, ar envelhecido e desleixado, provavelmente interessante em jovem, descuidara-se com uma vida da qual parecia ter tido que se arrepender. Estafada por dissabores que gastam e desgostam, que não matam mas moem, ganhara marcas que se antecipam à idade. Arrependia-se de ter deixado as duas meninas mais velhas à toa, sem regras nem bons exemplos. A primeira saíra de casa de namorado a tiracolo, depois de lho ter roubado (à mãe). O dito cujo também lhe saíra um bom traste, já ia fazendo a vida negra à moça e o modelo prometia repetir-se. Quanto a Cândida, era verdade que Joaquina se esforçava agora por lhe dar educação, impondo-se a si própria bons princípios e hábitos respeitáveis. Tinha saltado fora de um casamento abalroado por aventuras paralelas, arrombado pelo desrespeito mútuo e maus tratos; conseguira no naufrágio, depois de outras soluções errantes, agarrar-se à única prancha de sobrevivência honesta, o trabalho. Tentava com o pouco tempo e a pouca autoridade disponíveis segurar os filhos, assumindo finalmente que precisavam da sua orientação. Estava certa que perdera a parada com a mais velha. Suspeitava ter já ultrapassado o prazo de validade reconhecido por aquela segunda menina, tão apressada em ser fisicamente mulher-loira, decote pronunciado, lábios oferecidos e olhos azuis borrados de pintura.

Era sabido que Cândida já oferecera de si mais do que os lábios, na noite suspeita daquelas ruas, entre as torres desmaquilhadas. Provavelmente a troco de prazer fácil, imediato e pago. Tinha que alimentar o telemóvel, o vício do tabaco e o role das provocações ao que restava da autoridade da mãe. Seguramente, era quem queria ferir quando fugia sem deixar rasto nem mensagem no telemóvel. Ainda mais, sabendo que a progenitora estava a braços com o tribunal que de quando em vez a chamava para rever o cumprimento da medida de promoção e protecção.

Cândida não era parva nenhuma, embora quisesse mostrar-se sem escrúpulos e até, quem sabe, destituída. Ao fim e ao cabo, na escola não dera nada e não passara do 5º ano. No seu bairro também não era excepção à regra, apenas dava corpo ao padrão de insucesso e de absentismo escolar. As torres envergonhadas, empilhavam um conjunto imenso de apartamentos, famílias e carências de toda a espécie. Como trepadeiras em busca do sol, as crianças medravam envolvidas nesses emaranhados de desesperança, não dando conta do seu recado no contexto escolar.
O desajuste de Cândida conduzira o caso ao apoio educativo, daí à Comissão de Protecção de Menores, seguindo-se-lhe o tribunal. A definição do problema passava pelos meandros de um contexto familiar negligente, mais do que por algum diagnóstico clínico da menina.
E a menina grande, repontona e grosseira, sabia comparecer em tribunal apenas loira e de olhos azuis, de ingénuo rabo-de-cavalo, gancho a mais ou a menos consoante as farripas menos ou mais soltas e rebeldes, como ela. Em vez da super mini saia e da soca de tacão, umas calças de ganga apresentáveis e uns ténis decentes. A atitude abrandava e o discurso parecia de adolescente disposta a ser assertiva e cumpridora da orientação judicial: desenvolver competências para uma inserção ajustada na sociedade.
Alternando o desafio e a insolência com uma aparente e passageira sensatez, Cândida sabia que a prevalência da provocação lhe garantia ingresso certo em colégio educativo, como interna. Vistas bem as coisas, preferia dar por certo ter a mãe a acordá-la todos os dias, nem que fosse pelo telemóvel; não ter que se dar ao incómodo de reagir ao despertador e muito menos à maçada de o programar; ficar em casa a distender-se pelos sofás gastos do apartamento, quando lhe faltava a energia para escapadelas de gata assanhada pelas ruas; ter a irmãzita empenhada em lhe contrariar a lógica da irresponsabilidade, lembrando-lhe deveres, regras e tarefas a partilhar pelos quatro da casa: contar com o irmão que tinha bom cabedal e lhe servia para intimidar uns quantos chavalos que ela não curtia.
Por isso nas vésperas de ida a tribunal Cândida tendia a aproximar-se do desejável. Cumprida aquela representação, não tardava em resvalar pela falta de decoro e por todo o tipo de incumprimento. Voltava a ser a felina vadia e perversa de olhos acesos na noite, à procura do castigo, que afinal era mais seu do que de quem quer que fosse sua intenção esgadanhar.
Houve períodos em que quase nos fez crer, que afinal deixara de investir no azul carregado à volta dos olhos e que eram só as duas íris de azul claro adolescente e os contornos de um corpo juvenil, que naturalmente exibia.
Teve o pássaro na mão… a oportunidade de um estágio a poucos metros de casa, num edifício baixo na rua em que vivia, uma espécie de clareira naquela mata de cimento armado. A pressa matinal era atenuada pelo facto de estar ao virar da esquina; só tinha que deixar o vale dos lençóis, somar-lhe o tempo da higiene e arranjo pessoal, depois o mata-bicho e mais nada. Nem cálculos de trajectórias até uma qualquer paragem de transporte público, nem de duração de obrigatória viagem para chegar ao destino. O estágio sorria-lhe facilitado. Tanto, que achou que mais não seria demais, passando a chegar atrasada; um dia uma meia hora, outra meia mais adiante, meio dia (porque não?), até chegar ao cúmulo do atraso a cem por cento, ao zero de comparência, nem sequer lá pôr os pés!
Porquê Cândida? Até ia bem no desempenho, sabia que gostavam dela e também ela parecia ou dizia gostar. Porquê resvalar sorrateiramente para o nada, nada dizendo, nem uma satisfação?!
Seriam o abandono e o silêncio a melhor forma de provocar? Seria afinal o colégio interno, o anseio da menina grande, tão pequena de regras e de responsabilidade? Quereria Cândida não ter como transgredir, comandada e treinada como autómato sem arbítrio?
Contida num uniforme imposto que a tornasse igual às demais, deixaria de se fazer notar o maneio excessivo das ancas, o arrastar brejeiro das socas, o peito empoleirado no decote?
Despojada do que superficialmente mais tinha de seu, porventura chegaria mais perto da identidade do seu nome: Cândida…?
Não o viemos a saber. Deixou o pássaro fugir.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Natividade - Até sempre!

A figura seduzia numa intensidade de extremos. Grande mas delicada, exótica e no entanto suave, inspirava coragem bem como desproteção, resistência mas especialmente ternura…

Tanto antagonismo era todo coerência num corpo e num coração enormes de mulher, traída pelo homem e pelo destino. Nunca lhe ouvi desenvolvidos ressentimentos, nem para com o pai dos filhos, nem para com o pai da sorte (ou do azar), agarrada que estava com todas as forças à sua imensa condição de Mãe. Muitas vezes Mãe, com quanta veemência e dor.

O cabelo curto mas aberto em largos caracóis emoldurava-lhe um rosto amplo, sereno, de traços bem talhados. Os olhos arredondados mas longos, sublinhados por espessas pestanas reviradas, deixavam que o verde esmeralda que neles luzia revelasse inconfidências; o seu interior bom e o mal que lhes era exterior, a força e a fraqueza contidas. Aquele olhar projetava uma beleza externa com impacto e brilho de capa de revista. Refletia a da alma… somente para outros pares de olhos com coração.

Espantosa mulata, sem sombra de dúvida. Parceiro que a abandonasse não podia ser boa rês! Mas ela tendia a poupá-lo de culpas. Na versão mais generosa, o seu homem fora à procura de melhor sorte por terras brasileiras. Apostara em mudar o destino e caíra na própria armadilha; não que tivesse abandonado mulher e filhos, simplesmente levara sumiço em terras de além-mar. Perdera-se sem deixar rasto. Quando mais afundada na solidão e no infortúnio, a mesma história ganhava na boca de Natividade o sabor amargo de aventura à toa, senão mesmo de fuga daquele que se esquecera de enviar notícias. Nem uma carta para atravessar o imenso mar da vida que deste lado continuava em jeito de naufrágio, de luta pela sobrevivência, também de oração. Do lado de lá, tudo era imaginável na vertigem da distância, da selva das árvores e das favelas, das brasileiras sensuais e do samba inebriante. Tanto tempo decorrido e tamanha espera em vão. Ficara só nesta margem, com os filhos. Essa era a realidade, o seu património, certeza e contingência.

Quantos filhos? Mais que a meia dúzia. Edmundo valia por muitos, não no que esta mãe necessitava, dois braços de homem para ajudarem e a abraçarem, mas porque dependia inteiramente dela ou de outros corpos prestadores dos cuidados mais elementares e mais complexos. Esse filho sempre dependera e dependeria de outros corações capazes de transbordar de afeto e dedicação.

Edmundo tinha uma Paralisia Cerebral grave. Prisioneiro de uma cadeira de rodas mas mais ainda de uma multideficiência cruel, a vida negara-lhe qualquer tipo de autonomia. Crescera incapacitado a todos os níveis, todos! Podia-se acreditar que num corpo como o daquele adolescente, só a alma seria domínio seu, já que também o pensamento... que instrumentos possuía para voar?

Quem sabe, se esse filho tão especial quanto excecional, não fora o motivo de abandono da bela mulata sua mãe, pelo homem seu pai. Certo era que ela não o abandonaria nunca, e por aquele filho, mais ainda do que por todos os outros, faria das tripas coração - até sempre! E sempre é muito tempo, mas mulata como aquela devia ter tripa comprida, a avaliar pelo coração sempre em crescendo, refletido no verde límpido do olhar.

Natividade fora enredada pela dureza da vida, na luta pela subsistência e criação da filharada. Fora feita cativa do apoio permanente a prestar àquele seu rapaz grande, sempre bebé, sujeito a mil cuidados de reabilitação. Os técnicos sabiam que não era disso que se tratava, mas de evitar deformidades e chagas; de todas as incapacidades, reduzir algumas, complicando na panóplia de ajudas técnicas, numa procura inventiva de “melhor” qualidade de vida, para ele e para os seus cuidadores.

Até sempre, era um tempo previsivelmente frágil. A estrutura respiratória daquele filho de Deus não era ajustada à sua condição de humano, filho de Natividade. Talvez pudesse ser suficiente a um anjo… Por isso, como por tudo mais, a Mãe fazia da prestação dos cuidados uma prece de cada dia, muitas vezes ao dia. Até que num deles, no ato da alimentação, o sopro mais básico da vida foi interrompido, atraiçoando o corpo e deixando que a alma se desprendesse. Quem sabe se então mais feliz que nunca, nessa circunstância vibrante e livre, numa dimensão que provavelmente sempre fora a sua.

Até sempre, transformara-se num tempo eternamente gravado e guardado na alma da grande e bela mulata –Mãe.

Viria a revê-la na lide de vendedora por feiras do grande Porto - Peitos cheios e firmes, venha ver freguesa! – O pregão atraía à banca dos soutiens com postiço e de outras peças de roupa interior - Meias rendadas e calcinhas fio dental, tudo muito sexi! - Atraía-me a mim o rosto exótico e familiar, a cumplicidade do que nos fizera cruzar na vida: um menino grande e frágil, o seu, no seio de muitos outros que respeitosamente testemunhei.

Alguns, bem como algumas delas - as Mães- gravaram-me na alma registos profundos de uma linguagem que dispensa a palavra. Pura empatia, partilha-se em silêncio e guarda-se para sempre!...  

Na feira, a energia parecia dos pregões, mas era silenciosamente dela. Mesmo sem eles e sem Ele - Edmundo- presente, Natividade mantinha a sua aura intensa e delicada ao mesmo tempo.

O tempo, já se encarregara de instalar os seus vincos no rosto dela. Vínculos da adversidade da vida e muitos outros de uma saudade, até sempre especial.


                          

domingo, 15 de novembro de 2015

Olívia - Em queda livre

Três da tarde. Bairro social de Pedroso, bloco 4, entrada 8, rés do chão. Não era por mero acaso.
Acasos porventura, episódios de vida contados avulso como peças dispersas de um rosário, quebrado o fio condutor de quem lhes dá, ou já deu, a alma.
Três e cinco. Ninguém respondia ao toque da campainha que tangia já descrente. Escapavam ruídos pelas frinchas da porta de cada apartamento, pairando no átrio uma sonoridade residual. Só o rés do chão C guardava silêncio, adormecido em hora de sesta.
Preguiçosa demora por detrás daquela porta, mas a campainha teimou em cumprir a missão.
Olívia apareceu a custo, mal se sustendo em pé, pendurada nos seus magros quarenta e nove anos. Não tardou a que se rendesse, desfiando casos e acasos, afinal, contas presas do seu rosário de vida. De pijama e olhar xanax, desabafou ter tomado três comprimidos. Nada a que não estivesse habituada, para quem somava já seis lavagens ao estômago. E uma vez arrancada da lura e da letargia, não se ficava por aí, tinha afinal muito que contar. Tinha até troféus de guerra para exibir. Bastava levantar as pontas do pijama, desnudar o ventre, e logo sobressaía aflitiva, a cicatriz que atestava do violento acidente de há dois anos atrás. E o rosário foi ganhando corpo, revelando-se deformado e dorido tal como a cicatriz. Já não eram contas, eram feridas acumuladas, sobrepostas sem cura nem descanso.
Precisava de um cigarro para lhe aliviar o stress, abrir uma nesga de claridade no seu horizonte mental cinzento - Também ia bem uma cola, ajuda a vir à tona, deve ser do gás - E acende-se-lhe um sorriso no rosto, um quase brilho garoto nos olhos que por segundos esquecem o efeito xanax e a velhice precocemente instalada.
Mas o rendimento mínimo mal lhe dá para pagar as dívidas, quanto mais para esses devaneios. Aos serviços municipais de água deve cento e vinte contos que jorram em abundância na sua cabeça, enquanto há quatro meses, nem uma gota pinga nas torneiras lá de casa - Só peço que me deixem pagar em prestações até dez contos, mais não consigo - E Olívia só consegue fixar-se num olhar perdido e baço, presa a emaranhados de desesperança.
Recupera e resolve mostrar o apartamento. Roda cada torneira para provar que não tem gota de água. Mas tem o T3 esmerado e antes que lhe falhe a genica, abre armários, puxa gavetas, orgulhosa do asseio das roupas. Por falar nisso e porque a conversa é como as cerejas, vem-lhe à ideia uma arrelia menos sufocante, mesmo assim a atolar-lhe a cabeça em nervoso miudinho; a falta de roupa do seu Paulino - Inda por cima, o rapaz é danado de esquisito!
Paulino, o único filho que lhe resta no T3. Os outros habitam as fotos, com ou sem moldura. Alguns dos mais velhos já lhe deram netos. As três mais novas, retiradas pelo tribunal, regressam de 15 em 15 dias ao fim de semana. Nas vésperas de receber as cachopas, Olívia trata de compor o armário com géneros alimentares que pesam mais na conta da loja da esquina do que nas prateleiras lá de casa. E vai esticando a paciência do merceeiro – O sr. Zé já tá pelos cabelos de vender fiado. Falo-lhe ao coração, explico que vêm as meninas… o Paulino também já sabe, enquanto elas cá estão, nada de fumar ganza em casa. Em casa pois! Prefiro que ele fume no quarto do que ande pr´ aí a vadiar pela rua. Não dorme sem a passa e eu tenho que tirar à minha boca, ao arroz não, mas ao tabaco e à cola, que remédio! Por quinhentos paus compra-se aí um nico a um cigano. Vai dando p’ro moço se contentar.
E a mãe não deixa de lhe meter a chupeta, o menino tem de adormecer.
Falando em ciganos, não ficasse a ideia de que lhe aliviam o quotidiano; pelo contrário, são motivo de pesadelo, pretexto para engolir e repetir dois ou mais comprimidos - As que mais me custaram a criar, a Carina e a Raquel, ambas fugidas de casa já p’ra dois meses por ameaça de morte desses sacanas… de morte!
Muito mais do que a roupa a menos do Paulino, e mais do que a carência de água em casa, a ausência nela das filhas, seguramente um vazio maior e mais profundo, aquele que justificava o seu traje de sono em plena tarde e lhe vergava a figura.
 Quatro horas. Olívia já se aquietara no sofá, encolhida e de pernas dobradas por baixo do corpo, lembrando uma criança. A postura não condizia com os sulcos desenhados no rosto, nem a voz, remanescente de uma juventude estafada. O timbre confirmava quase uma menina, decerto uma mulher suave e meiga, da vida pedindo apenas afecto e companhia.
Julguem os outros que é por sexo, chamem-lhe até maluca como fazem, ela sabe que o não é – Queria um companheiro e gostava muito de gostar! - Por isso, não hesitara em se entregar à paixão intensa que durou quatro anos - Primeiro foi como se de um filho se tratasse, era um moço de dezoito aninhos, andava aí com o meu Zetó (e mostra a fotografia dos dois jovens). Depois foi gostar demais e ainda gosto tanto que… - a boca se emudece. Resvalam-lhe as mãos em desespero pelos cabelos desalinhados, até que o rosto se encobre e Olívia murcha.
Mais do que por falta de água e de dinheiro, pela pouca roupa do Paulino, pela muita ausência das filhas ameaçadas de morte, o coração de Olívia estremece, o rosto crispa-se e a voz turva-se, perante a privação de um amor traído pela idade e pela lonjura.
 - Pedroso fica a léguas da França!
A distância e o ciúme haviam sido penosos demais e a alma quisera perder-se. Gasto por uma vida de dura sobrevivência, nove filhos, quatro pais (companheiros) e muitos desamores, o corpo projectara-se sem dó da janela de um terceiro andar.
O corpo sobreviveu, quer o quisesse quer não. Quanto à alma, permanece acorrentada a mágoas e medicamentos que as afogam e a deixam submersa… quantos mais, melhor!
Olívia arrepia-se na saudade daquele que ainda lhe enche e lhe esvazia o pensamento, lhe esquenta e lhe gela o sangue no corpo, num permanente estado febril. Sobrevivente de um terceiro piso, não resiste ao flagelo das memórias e da carência.

Olívia vegeta, rodopiando em queda livre.