domingo, 4 de setembro de 2016

Agostinho - Abre-te Sésamo

Virou costas ao pátio naquele final de tarde cálido. Parecia-lhe até que esfriava. Sentia-se defraudado com o que acabara por não ver. Achou-se desajeitado no seu jeito de curioso sem remédio e castigava-se trazendo à lembrança outras situações mal sucedidas.

A caminho da camarata recordava um episódio dos seus dez anos, um dos poucos registos que não deixara qualquer mágoa, apenas umas quantas areias nos olhos, um raspanete com sotaque brasileiro e a perda de alguns sabores de Verão. Talvez por isso fosse a lembrança eleita. Era inocente, inócua, até reparadora.

Esse Domingo tinha sido um dia invulgarmente feliz. Passado “entre as mulheres”, mãe, irmã, uma tia brasileira e as primas. Em boa verdade a tia era portuguesa, emigrara há muito para o Brasil, lá casara e nesse ano viera rever a família. Trazia as filhas já crescidas, essas sim, bem brasileiras no sentido mais visual do termo. Lembrava-se, apesar de ainda ser puto na altura, que as achava mesmo boazonas. Olhava para elas e tinha a vertigem de entrar nas imagens televisivas do Carnaval do Rio, com moças bronzeadas bem descascadas, grandes decotes, brutas mini saias ou calções generosos no que deixam por cobrir. Agora à distância parecia-lhe que talvez fosse fantasia sua de miúdo, acentuar a imagem das primas com todo um colorido e sensualidade a que simplesmente não estava familiarizado. Talvez até fossem miúdas mais ou menos banais.

Por uma coincidência feliz, o pai tinha um jogo de futebol imperdível e a tia tinha-os convidado para um dia na praia de Espinho, com direito a barraca alugada, o que para si era coisa de gente fina. No final da manhã, antes dos preparativos do farnel, a canalha foi ao banho. Primeiro ouviram-se muitos “ai…ui ”, que as águas do mesmo Atlântico não são desta banda aquelas a que as primas estavam habituadas. Nada que não se resolvesse rapidamente com umas quantas chapinadelas e um valente chapão do primo. As raparigas ficaram tão ensopadas quanto determinadas a mergulhar de seguida. Demorou pouco o banho, as moças saíram queixosas de que a água cortava os ossos, tratando de correr para a barraca para se secarem e trocarem de biquíni. Não era o caso da irmã, que tinha apenas um que pedira emprestado a uma amiga. Tinha vergonha do seu velho fato de banho puído, esticado pelos anos e pela força do seu corpo que largara a menina e já se vestira de mulher. O que faltava a uma, as outras tinham em excesso, sob o pretexto de estarem sempre enxutas.

Agostinho pensava que os biquínis eram tão reduzidos que logo logo secariam. As primas queriam era dar no olho, exibir outro estampado, deixar mais qualquer coisa em evidência…

Enxutas o caraças! A porem os gajos malucos, isso sim.

O priminho, apesar dos seus dez anos, não se deixava iludir com floreados tropicais, exíguos mas ainda assim dispensáveis para quem espreitava uma nesga de oportunidade. Naquele momento as primas e a irmã tinham baixado o toldo da barraca. Com jeito e à socapa, ele poderia embevecer-se com o corpo desnudado das raparigas já mulheres, nos seus esplendorosos 14, 16 e 17 anos. Assegurou-se que a mãe e a tia estavam sentadas mais à frente, viradas para o mar a tricotar conversas. Deu meia volta à barraca, aliviou cuidadosamente a areia sobreposta na banda terminal da cobertura de pano e levantou-a um pouco para mergulhar a cabeça e então saborear o fruto proibido.

Estava mesmo a pedi-las. A primeira rapariga a dar-se conta chutou impulsivamente um pedaço de areia e o voyeur acabou aos saltos e aos berros, num alarido que despertou todas as atenções.

-Que é isso seu Agostinho? Não tem nada q`espreitar às mininas! - ralhou a tia no seu português abrasileirado, enquanto a mãe o interrogava com um olhar de reprensão. Foi a ela que ele respondeu, com a confirmação do que tentava negar.

- Eu não as  estava a espreitar minha mãe, apenas a ver o que elas faziam!...

Na ausência do pai, o castigo apenas teve o amargo de boca de ficar sem o gelado da OLÁ e a língua da sogra a que “às mininas” tiveram direito. Neste último caso custou-lhe menos. Nem conhecia o sabor e o nome lembrava-lhe as palavras envenenadas que ouvia do pai contra a avó materna, pelo que se resignava com a ideia de não estar a perder grande coisa. Já ficar sem o seu predileto Perna de Pau, enquanto as moças mordiam e lambiam cornetos, deixou-o por momentos, amputado.

Algures no Alentejo, nesta tarde de sexta-feira, Agostinho resolvera espreitar a chegada da miúda que vinha do Porto e o pontapé de areia que apanhou foi ter-lhe saído um guna.

Mais uma vez fizeste bosta Agostinho! Já devias ter aprendido a olhar pela tua vida sem andares a espreitar a dos outros. Agora perdes a saída à vila, parte da mesada e curtiste bué. Ficas mas é a bater mal...

A chegada de um novo residente deixara de ser do seu interesse e Agostinho desmobilizara. Cabisbaixo, dirigiu-se aos balneários para se confinar à rotina da higiene de final de dia, antes do jantar. Mas o pensamento não lhe deu tréguas.

Às tantas inda vais gramar com o guna na tua camarata. Até estava a ficar fixe desde que o sacana do Alex basou daqui. Mania que mandava em tudo e todos, a exibir os peitorais  tatuados e a trabalhar p´ró músculo p´ra intimidar… e tu, “o banhas”, o “Michelin”, consoante a inspiração do tipo, ou lhe fazias as vontades ou lerpavas. Mas o gajo que chegou pareceu-me um guna de merda, com tamanho de gaja. Tenho é que lhe falar logo de alto p´ró acagaçar  e impor a lei dos mais velhos. Pelo menos há mais tempo aqui. Fazes-te ao gajo em força, como te fizeram a ti. Tá-se bem. Tenho pena, é o que um tipo aprende nestas espeluncas.

O pensamento ia azedando enquanto tomava banho. E o jorro de água apenas morno e pouco determinado  remetia-o para o chuveiro improvisado do anexo de sua casa e de novo as lembranças como pingas soltas, pesadas.

- Agostinho,  despacha-te moço! Se o teu pai chega e dá c´o  depósito sem água, enche-nos de porrada! Olha que hoje é dia do patrão lhe dar a féria, à vinda desvia-se pela tasca e sabes no que dá, não sabes? Ele desgraça-nos filho, despacha-te!

E as memórias faziam-no desligar o chuveiro e largar o banho. De momento não tinha o Alex para o arrancar de lá, só porque sim, p´ra chatear a mona, impor respeito, mania que era o maior, sacana de merda, basou, inda bem e nem sequer o invejo. Deve andar pr´aí a monte, morto de sede como um cão vadio.

Agostinho encontrara forma de varrer o pai da mente ocupando-a com um substituto menos nefasto. Pelo menos o estupor do Alex não constituía perigo para a sua mãe. Ausente da instituição era suportável  tê-lo presente na ideia.

Mas não controlava a intermitência do seu pensamento e tropeçou de novo no pai. Em boa verdade o velho continuaria a infernizar a mãe, talvez apenas mais moderado na forma. Afinal não o tinha a ele em casa como pretexto para armar desacato, perder as estribeiras e pegar no cinto para dar coça da feia, daquela que dói, mais ainda na alma que no corpo. E o corpo ficava bem marcado. A mãe acorria para proteger o rapaz e apanhava por tabela ou sem o ser. A irmã é que fizera bem, cansou-se e fugiu com o namorado para a Suíça. Nessa altura a mãe passou mal, foi um imenso desgosto. Como se não bastasse ficar sem a sua menina que era também o seu braço direito e seu amparo, ainda tinha o marido a cobrar-lhe o sucedido.

- A mãezinha dava sempre os améns à menina, olha como te agradeceu!... Uma  ingrata, é o que é!

Na sua resiliência, a mãe lá foi remendando aquele rasgão da vida como pôde. Aprendeu a coser a alma com o fio grosseiro do alívio; a filha já não apanharia por acorrer em sua defesa ou do irmão, que a moça tinha fibra. Rapariga discreta e humilde, mas inteligente e determinada. Era a única a enfrentar a besta, oh se era! E a mãe, dividida na ambivalência do desgosto e do orgulho, acabava por se fortalecer. No íntimo desejava ter sido como a filha, ter tido a mesma coragem nos seus tempos de menina e moça. Mas nesses tempos, crescimento e pensamento eram formatados por espartilhos machistas bem aperreados. Agora estava cansada e velha.

Agostinho também almejava ter a coragem da irmã. Apesar de sete anos mais novo, sentia que devia ser ele a exibir atributos de bravura do género masculino, ficando a corroer-se numa certa cobardia. Era como se uma acidez lhe fosse consumindo a alma. A mãe sempre pusera água na fervura, incutindo nos filhos mais do que tolerância, subordinação. Fracassara redondamente com a mais velha. O mais novo crescia, “botava corpo”, mas parecia aquietado. Sem que se visse, medrava nele um cartucho explosivo de emoções. A submissão ao pai ia-se distendendo, retorcendo, transfigurava-se; ele próprio tinha dificuldade em admitir que o que sentia era ódio pelo agressor e revolta pelo laço familiar imposto pelo destino.

Um dia, por fim, Agostinho percebeu. Qual laço qual nada, aquilo era um nó de garrote que os sufocava, lhes roubava o direito a indignarem-se, sequer a sorrir. Nesse dia começou por implorar ao pai que parasse de insultar e de polear a mãe. O pai continuou a escancarar armários e a arremessar as panelas em todas as direções. A alma do rapaz decidiu “botar corpo”, o corpo ganhou alma e empoderou a voz num confronto imprevisto em que ele era mais ele ou mais outro. Um tal capaz de enfrentar o pai e de lhe dizer que faria queixa à polícia caso não parasse. O homem embrutecido pelo álcool nem percebeu o que tinha mudado. Continuou a abrir e a desventrar as gavetas na cegueira de agarrar a única faca de cozinha que havia lá em casa e que a mulher religiosamente guardava em sítios diferentes, à cautela de momentos como aquele. Não fosse o destino transformar aquela faca numa arma letal.

Entre a dúvida de deixar a mãe naquelas circunstâncias e a determinação do que dissera ao agressor, Agostinho fez a escolha e saiu de casa aos berros, como se fosse uma sirene. Enquanto galgava as ruas, berrava aos quatro ventos para acudirem, até que chegou ao posto da GNR. Pela primeira vez deixou à porta o medo sufocante que até então o amarrara e tolhera. Arrancou a camisa de forças que o impedia de crescer. Entrou possuído pelo ódio e pela revolta e saiu a sentir-se nu, como que envolto numa imensa bandeira branca de libertação e de paz. Estava feito. Tinha perdido a cabeça voltando a ganhá-la. Tinha crescido, tomava consciência e assumia.

Não hás-de ficar sempre a rir-te de nós, bêbado covarde, cabrão! Deixei de ter medo, ouviste? Ouviste?

- Ouviste a novidade? Oh pá, Agostinho, já sabes das últimas?

 Um parceiro de camarata chamava-o para o ali e agora.

- Chegou uma miúda nova do Porto!

Agostinho estava longe daquele monte Alentejano.

-Ouviste, ou tás mouco meu? É preciso soletrar: Ga-ja no-va, do Por-to…

- Gajo.

- És mesmo Tinhoso pá!

Desvalorizando a informação, Agostinho sintonizou o pensamento na alcunha que lhe coubera. Vistas bem as coisas, até andara com sorte. “Tinhoso” derivara de Agostinho - tinho, deturpado e desclassificado até Tinhoso. Mas isso desviara as atenções da fatal associação da alcunha ao físico, o que o libertara  do “Banhas” ou “Michelin”. Assim a sua auto-estima, muito pouco insuflada precisamente por uns quantos pneus flácidos, escusava de levar em cheio e a toda a hora com o rombo da alcunha. Claro que outro estatuto, melhor dizendo outro poder, tinha o evadido “Alex”. Estava mesmo a ver-se que esse tinha imposto um diminutivo do seu próprio nome e ainda se dava ao luxo de acrescentar “ Alex ou Alexandre o grande, nos momentos mais solenes”. E quando o dizia, sentia-se na obrigação de dar uma curta aula de história para avivar a memória dos mais esquecidos ou inferiorizar “os mais estúpidos que não aprenderam uma porra na escola.” O parceiro de camarata que agora o chamava, também fora bafejado por alguma sorte. Tinha uma alcunha que derivava do nome e do facto de ser loiro, sem desvios ou originalidade. Alguém dissera:

-  Oh pá, o gajo é Rui e é russo. É de caras, fica Ruisso!

E os demais, à falta de melhor, acataram aquela ausência de inspiração. Claro que depois, alguém descobriu com o uso umas quantas variantes também pouco criativas.

- Ruisso! Rui-isso, Rui-aquilo, ao quilo ou à grama, meu?

E a conversa derivava para desejos ou memórias de manobras clandestinas com drogas.

E o “Ruisso” voltava à carga:

- Dás-te à cena de faltar à sessão do doctor, e inda por cima pões em causa a informação aqui do mois-je? Fica sabendo que a chavala tem apenas catorze aninhos. Na sessão de grupo a que mister Tinhoso se deu ao luxo de faltar, o sr. doutor psicólogo  pediu  freio nos cavalos para a miúda não ser logo atropelada… Inda por cima fim de semana, doutores ausentes… Bora lá Agostinho, se te despachares podemos ser os primeiros a chegar ao refeitório, topamos a miúda e marcamos posição antes dos outros.

Agostinho fazia agora um esforço por cruzar a informação que lhe chegava do parceiro, com a imagem recente da chegada a que assistira.

- Oh pá, oh Ruisso, eu  estava no pátio e vi o gajo a chegar, pareceu-me um guna de merda.

- Sabes que te digo? O terapeuta é que tem razão, meu: tás mesmo a precisar de ir ao médico dos olhos. Andas mesmo a ver mal. Inda vais virar caixa d´óculos, para além de gordo. Vá,  não disse nada. Anda mas é daí Tinhoso!

No caminho para o refeitório os dois rapazes trocaram mais algumas impressões sobre a visão de Agostinho que já se dava por desenganado quanto à sua capacidade de ver ao longe. Mas naquele momento isso passara a ser secundário. Sobrepunha-se a ansiedade de corrigir a impressão havida, através do contacto direto com uma miúda nova e isso estava prestes a acontecer. Agostinho percebeu que uma batida acelerada do seu coração se antecipava ao ritmo da passada. O pensamento voltava a segredar-lhe conjeturas.

Não tens emenda, já estuporaste o fim de semana, agora tás todo excitado. Como dizia o teu avozinho, só por um "rabo de saias". Quer dizer, se tiver tirado as calças de guna… pela amostra sai-te é uma gaja asquerosa e ficas na bosta.

E passaram a porta do refeitório. A Assistente Social tinha ficado para acompanhar as primeiras horas de acolhimento da nova residente e estava com ela para a apresentar ao grupo antes do jantar. A jovem estava a ler a ementa afixada no quadro informativo ao fundo da cantina.

- Ora bolas, afinal oh Ruisso, os primeiros a marcar posição… com a AS no encalce da miúda…

- E eu ia adivinhar que a Doutorinha ficava p´ro jantar, numa sexta-feira?…

Chegara o momento, mas de forma bem distinta da que os dois rapazes tinham imaginado, com o enquadramento da técnica a mediar as apresentações.

- Agostinho e Rui, já que são os primeiros a chegar venham cá. Como vos tenho por bons rapazes, vou incumbir-vos do acolhimento da vossa nova colega aqui no refeitório. Tânia podes chegar aqui, por favor?

Tânia foi-se aproximando. Usava as mesmas calças de guna que Agostinho tinha visualizado ao longe. Com uma mão encafuada num bolso, a outra já sem o boné que segurava quando saira do carro da polícia que a levara até ali. Andar gingão. Uma das sobrancelhas tinha-se erguido como que a marcar a guarda de um olhar supostamente superior e desconfiado.

- Tânia, apresento-te o Agostinho e o Rui. Podes ficar tranquila que eles vão ser os teus guarda-costas deste fim de semana e se o digo é porque posso confiar, não é assim rapazes?

Tânia por um curto instante libertou a sobrancelha, esboçou um quase sorriso, mas logo se protegeu num vergar de tronco e baixando a cabeça.

Para os rapazes não parecia nada evidente que Tânia precisasse de guarda-costas. Estavam tramados, isso sim, virara-se o feitiço contra o feiticeiro. Era o que lhes faltava terem que ser ama seca de um guna em versão feminina. Tinham perdido a pica toda. Que era gaja era, mas dúbia. Ainda por cima tinham sido empossados de betinhos anfitriões. Valeu-lhes a chegada de uma tal de Sara, brasuca despachadona que reclamou a missão do acolhimento. Argumentou com a pertença à mesma camarata, experiência e provas dadas em anteriores receções, não se poupando no que lhe era mais característico: uma gesticulação tão hiperativa quanto ela, que esgotava qualquer mortal só de assistir. Pelas vinte horas de uma sexta-feira, a assistente social não tencionava debater-se com todo aquele voluntarismo, ainda mais que já salvaguardara o que pretendia, pôr tento nas duas feras que se tinham revelado mais assanhadas no conhecimento da nova presa. Não contrariando a iniciativa da intensa Sara, enfatizou o papel dos dois rapazes ali presentes no controlo do setor masculino. Agostinho e Rui podiam descomprimir, a tarefa estava atenuada. Também como não se tratava de uma gaja boa, o nível de alerta baixava.

Após o jantar, já a Assistente Social tinha ido embora, os comentários entre as raparigas iam no mesmo sentido. Queixavam-se de barriga cheia, por ter chegado uma “machona” do Porto; parecia-lhes esquisito, por ali era novidade. A vantagem seria não pôr em risco o tabuleiro de xadrez das seduções e namoricos  ao momento.

- Eles não vêm nada na gaja e ela não quer nada com eles. Pode é chagar-nos a mona por querer brincadeira connosco. Tá-se bem, leva logo uma lambada que vai parar ao Porto mais depressa do que se pôs aqui, mesmo com a sirene da bófia a abrir caminho!...

Numa das camaratas masculinas, já deitados e antes de adormecerem, Agostinho e Rui retomavam o assunto comentando o fiasco:

- Ouve lá Ruisso, eu posso estar a ver mal ao longe ou até não, porque de facto a gaja mais parece um gajo meu… mas tu é que não estás a ver népia ao perto. Então não topaste os olhos azuis da miúda?

Rui não se tinha apercebido.

- Ouve lá, a miúda é mesmo deslavada, nem ponta de maquilhagem meu. Sem as tintas  todas que as outras metem, aquela coisa preta em cima dos olhos, o eye não sei das quantas… se tem olhos azuis nem se topa. Só lhe vi uma sobrancelha com a gaja a armar-se em mauzão e a cabeça rapada  com crista de gunão. Olha até fiz verso … oh Tinhoso, vejamos o lado positivo desta cena: afinal vês mesmo bem, meu, não vais precisar d´óculos. Quanto ao resto, melhores dias virão, quero dizer, melhores gajas, miúdas boas. Boa noite!

E fechou a luz.

Agostinho fechou os olhos e voltou a abrir como quando era criança e o sono apertava, mas ele não queria perder pitada da história que a mãe lhe contava. Sabia que se fechasse os olhos era o “João Pestana” quem ganhava e ele perdia a magia daqueles contos do “Ali Babá e os quarenta ladrões”. A mãe dizia “Abre-te Sésamo…” e naquela noite de sexta-feira, no escuro daquele quarto perdido algures por Montes Alentejanos, Agostinho queria que essa mágica  acontecesse. 

- Lembras-te, meu filho, uma vez que fomos a uma praia com uns pedregulhos enormes, Lavadores… eras inda um fedelhito…

Agostinho não estava seguro se a imagem que guardava era lembrança ou fruto da imaginação espicaçada pelo conto.

- Sim mãe, um rochedo enorme…

E a pedra gigantesca inacreditavelmente parecia mover-se…

Aconteceu. Agostinho vislumbrou aquele breve instante em que Tânia baixara a guarda da sobrancelha, esboçara um quase sorriso e acendera duas luzes azuis que só ele tinha visto. Deleitado, voltava a abrir e a fechar os olhos provocando o golpe mágico de ver e rever esse momento. Queria perceber a intensidade daquele olhar. Não conseguia decifrar se era ténue e doce, se incendiário e provocador. Uma ou outra coisa o excitava, mas queria perceber. Primeiro era o golpe de sobrancelha que distraía, depois os lábios a prometerem um sorriso e logo a cabeça da miúda baixava resguardando as duas pedras preciosas. Tânia, Agostinho repetia o nome para si, apenas com o movimento da boca, em surdina, como que a testar o sabor que deixava…

Já não tinha dúvidas. Fora ele a apanhar a informação da chegada, a decidir faltar à sessão de grupo, toda aquela ansiedade, depois a baralhação do guna…. mas aquele furtivo olhar azul nem o espertalhaço do Ruisso cocara. Havia sim um tesouro escondido e só ele o sabia. Agostinho queria chegar àquelas duas safiras, seriam suas. E voltava a tentar.

Abre-te Sésamo…

Mais uma e outra vez, umas quantas até que adormeceu.