domingo, 6 de dezembro de 2015

Natividade - Até sempre!

A figura seduzia numa intensidade de extremos. Grande mas delicada, exótica e no entanto suave, inspirava coragem bem como desproteção, resistência mas especialmente ternura…

Tanto antagonismo era todo coerência num corpo e num coração enormes de mulher, traída pelo homem e pelo destino. Nunca lhe ouvi desenvolvidos ressentimentos, nem para com o pai dos filhos, nem para com o pai da sorte (ou do azar), agarrada que estava com todas as forças à sua imensa condição de Mãe. Muitas vezes Mãe, com quanta veemência e dor.

O cabelo curto mas aberto em largos caracóis emoldurava-lhe um rosto amplo, sereno, de traços bem talhados. Os olhos arredondados mas longos, sublinhados por espessas pestanas reviradas, deixavam que o verde esmeralda que neles luzia revelasse inconfidências; o seu interior bom e o mal que lhes era exterior, a força e a fraqueza contidas. Aquele olhar projetava uma beleza externa com impacto e brilho de capa de revista. Refletia a da alma… somente para outros pares de olhos com coração.

Espantosa mulata, sem sombra de dúvida. Parceiro que a abandonasse não podia ser boa rês! Mas ela tendia a poupá-lo de culpas. Na versão mais generosa, o seu homem fora à procura de melhor sorte por terras brasileiras. Apostara em mudar o destino e caíra na própria armadilha; não que tivesse abandonado mulher e filhos, simplesmente levara sumiço em terras de além-mar. Perdera-se sem deixar rasto. Quando mais afundada na solidão e no infortúnio, a mesma história ganhava na boca de Natividade o sabor amargo de aventura à toa, senão mesmo de fuga daquele que se esquecera de enviar notícias. Nem uma carta para atravessar o imenso mar da vida que deste lado continuava em jeito de naufrágio, de luta pela sobrevivência, também de oração. Do lado de lá, tudo era imaginável na vertigem da distância, da selva das árvores e das favelas, das brasileiras sensuais e do samba inebriante. Tanto tempo decorrido e tamanha espera em vão. Ficara só nesta margem, com os filhos. Essa era a realidade, o seu património, certeza e contingência.

Quantos filhos? Mais que a meia dúzia. Edmundo valia por muitos, não no que esta mãe necessitava, dois braços de homem para ajudarem e a abraçarem, mas porque dependia inteiramente dela ou de outros corpos prestadores dos cuidados mais elementares e mais complexos. Esse filho sempre dependera e dependeria de outros corações capazes de transbordar de afeto e dedicação.

Edmundo tinha uma Paralisia Cerebral grave. Prisioneiro de uma cadeira de rodas mas mais ainda de uma multideficiência cruel, a vida negara-lhe qualquer tipo de autonomia. Crescera incapacitado a todos os níveis, todos! Podia-se acreditar que num corpo como o daquele adolescente, só a alma seria domínio seu, já que também o pensamento... que instrumentos possuía para voar?

Quem sabe, se esse filho tão especial quanto excecional, não fora o motivo de abandono da bela mulata sua mãe, pelo homem seu pai. Certo era que ela não o abandonaria nunca, e por aquele filho, mais ainda do que por todos os outros, faria das tripas coração - até sempre! E sempre é muito tempo, mas mulata como aquela devia ter tripa comprida, a avaliar pelo coração sempre em crescendo, refletido no verde límpido do olhar.

Natividade fora enredada pela dureza da vida, na luta pela subsistência e criação da filharada. Fora feita cativa do apoio permanente a prestar àquele seu rapaz grande, sempre bebé, sujeito a mil cuidados de reabilitação. Os técnicos sabiam que não era disso que se tratava, mas de evitar deformidades e chagas; de todas as incapacidades, reduzir algumas, complicando na panóplia de ajudas técnicas, numa procura inventiva de “melhor” qualidade de vida, para ele e para os seus cuidadores.

Até sempre, era um tempo previsivelmente frágil. A estrutura respiratória daquele filho de Deus não era ajustada à sua condição de humano, filho de Natividade. Talvez pudesse ser suficiente a um anjo… Por isso, como por tudo mais, a Mãe fazia da prestação dos cuidados uma prece de cada dia, muitas vezes ao dia. Até que num deles, no ato da alimentação, o sopro mais básico da vida foi interrompido, atraiçoando o corpo e deixando que a alma se desprendesse. Quem sabe se então mais feliz que nunca, nessa circunstância vibrante e livre, numa dimensão que provavelmente sempre fora a sua.

Até sempre, transformara-se num tempo eternamente gravado e guardado na alma da grande e bela mulata –Mãe.

Viria a revê-la na lide de vendedora por feiras do grande Porto - Peitos cheios e firmes, venha ver freguesa! – O pregão atraía à banca dos soutiens com postiço e de outras peças de roupa interior - Meias rendadas e calcinhas fio dental, tudo muito sexi! - Atraía-me a mim o rosto exótico e familiar, a cumplicidade do que nos fizera cruzar na vida: um menino grande e frágil, o seu, no seio de muitos outros que respeitosamente testemunhei.

Alguns, bem como algumas delas - as Mães- gravaram-me na alma registos profundos de uma linguagem que dispensa a palavra. Pura empatia, partilha-se em silêncio e guarda-se para sempre!...  

Na feira, a energia parecia dos pregões, mas era silenciosamente dela. Mesmo sem eles e sem Ele - Edmundo- presente, Natividade mantinha a sua aura intensa e delicada ao mesmo tempo.

O tempo, já se encarregara de instalar os seus vincos no rosto dela. Vínculos da adversidade da vida e muitos outros de uma saudade, até sempre especial.