domingo, 15 de novembro de 2015

Olívia - Em queda livre

Três da tarde. Bairro social de Pedroso, bloco 4, entrada 8, rés do chão. Não era por mero acaso.
Acasos porventura, episódios de vida contados avulso como peças dispersas de um rosário, quebrado o fio condutor de quem lhes dá, ou já deu, a alma.
Três e cinco. Ninguém respondia ao toque da campainha que tangia já descrente. Escapavam ruídos pelas frinchas da porta de cada apartamento, pairando no átrio uma sonoridade residual. Só o rés do chão C guardava silêncio, adormecido em hora de sesta.
Preguiçosa demora por detrás daquela porta, mas a campainha teimou em cumprir a missão.
Olívia apareceu a custo, mal se sustendo em pé, pendurada nos seus magros quarenta e nove anos. Não tardou a que se rendesse, desfiando casos e acasos, afinal, contas presas do seu rosário de vida. De pijama e olhar xanax, desabafou ter tomado três comprimidos. Nada a que não estivesse habituada, para quem somava já seis lavagens ao estômago. E uma vez arrancada da lura e da letargia, não se ficava por aí, tinha afinal muito que contar. Tinha até troféus de guerra para exibir. Bastava levantar as pontas do pijama, desnudar o ventre, e logo sobressaía aflitiva, a cicatriz que atestava do violento acidente de há dois anos atrás. E o rosário foi ganhando corpo, revelando-se deformado e dorido tal como a cicatriz. Já não eram contas, eram feridas acumuladas, sobrepostas sem cura nem descanso.
Precisava de um cigarro para lhe aliviar o stress, abrir uma nesga de claridade no seu horizonte mental cinzento - Também ia bem uma cola, ajuda a vir à tona, deve ser do gás - E acende-se-lhe um sorriso no rosto, um quase brilho garoto nos olhos que por segundos esquecem o efeito xanax e a velhice precocemente instalada.
Mas o rendimento mínimo mal lhe dá para pagar as dívidas, quanto mais para esses devaneios. Aos serviços municipais de água deve cento e vinte contos que jorram em abundância na sua cabeça, enquanto há quatro meses, nem uma gota pinga nas torneiras lá de casa - Só peço que me deixem pagar em prestações até dez contos, mais não consigo - E Olívia só consegue fixar-se num olhar perdido e baço, presa a emaranhados de desesperança.
Recupera e resolve mostrar o apartamento. Roda cada torneira para provar que não tem gota de água. Mas tem o T3 esmerado e antes que lhe falhe a genica, abre armários, puxa gavetas, orgulhosa do asseio das roupas. Por falar nisso e porque a conversa é como as cerejas, vem-lhe à ideia uma arrelia menos sufocante, mesmo assim a atolar-lhe a cabeça em nervoso miudinho; a falta de roupa do seu Paulino - Inda por cima, o rapaz é danado de esquisito!
Paulino, o único filho que lhe resta no T3. Os outros habitam as fotos, com ou sem moldura. Alguns dos mais velhos já lhe deram netos. As três mais novas, retiradas pelo tribunal, regressam de 15 em 15 dias ao fim de semana. Nas vésperas de receber as cachopas, Olívia trata de compor o armário com géneros alimentares que pesam mais na conta da loja da esquina do que nas prateleiras lá de casa. E vai esticando a paciência do merceeiro – O sr. Zé já tá pelos cabelos de vender fiado. Falo-lhe ao coração, explico que vêm as meninas… o Paulino também já sabe, enquanto elas cá estão, nada de fumar ganza em casa. Em casa pois! Prefiro que ele fume no quarto do que ande pr´ aí a vadiar pela rua. Não dorme sem a passa e eu tenho que tirar à minha boca, ao arroz não, mas ao tabaco e à cola, que remédio! Por quinhentos paus compra-se aí um nico a um cigano. Vai dando p’ro moço se contentar.
E a mãe não deixa de lhe meter a chupeta, o menino tem de adormecer.
Falando em ciganos, não ficasse a ideia de que lhe aliviam o quotidiano; pelo contrário, são motivo de pesadelo, pretexto para engolir e repetir dois ou mais comprimidos - As que mais me custaram a criar, a Carina e a Raquel, ambas fugidas de casa já p’ra dois meses por ameaça de morte desses sacanas… de morte!
Muito mais do que a roupa a menos do Paulino, e mais do que a carência de água em casa, a ausência nela das filhas, seguramente um vazio maior e mais profundo, aquele que justificava o seu traje de sono em plena tarde e lhe vergava a figura.
 Quatro horas. Olívia já se aquietara no sofá, encolhida e de pernas dobradas por baixo do corpo, lembrando uma criança. A postura não condizia com os sulcos desenhados no rosto, nem a voz, remanescente de uma juventude estafada. O timbre confirmava quase uma menina, decerto uma mulher suave e meiga, da vida pedindo apenas afecto e companhia.
Julguem os outros que é por sexo, chamem-lhe até maluca como fazem, ela sabe que o não é – Queria um companheiro e gostava muito de gostar! - Por isso, não hesitara em se entregar à paixão intensa que durou quatro anos - Primeiro foi como se de um filho se tratasse, era um moço de dezoito aninhos, andava aí com o meu Zetó (e mostra a fotografia dos dois jovens). Depois foi gostar demais e ainda gosto tanto que… - a boca se emudece. Resvalam-lhe as mãos em desespero pelos cabelos desalinhados, até que o rosto se encobre e Olívia murcha.
Mais do que por falta de água e de dinheiro, pela pouca roupa do Paulino, pela muita ausência das filhas ameaçadas de morte, o coração de Olívia estremece, o rosto crispa-se e a voz turva-se, perante a privação de um amor traído pela idade e pela lonjura.
 - Pedroso fica a léguas da França!
A distância e o ciúme haviam sido penosos demais e a alma quisera perder-se. Gasto por uma vida de dura sobrevivência, nove filhos, quatro pais (companheiros) e muitos desamores, o corpo projectara-se sem dó da janela de um terceiro andar.
O corpo sobreviveu, quer o quisesse quer não. Quanto à alma, permanece acorrentada a mágoas e medicamentos que as afogam e a deixam submersa… quantos mais, melhor!
Olívia arrepia-se na saudade daquele que ainda lhe enche e lhe esvazia o pensamento, lhe esquenta e lhe gela o sangue no corpo, num permanente estado febril. Sobrevivente de um terceiro piso, não resiste ao flagelo das memórias e da carência.

Olívia vegeta, rodopiando em queda livre.

Singela Homenagem

Nesta data, dois dias após um terrível e negro registo na História da Humanidade, deixo aqui expresso o mais profundo pesar pela partida trágica e brutal das vítimas do massacre ocorrido na passada sexta-feira, 13 de Novembro em Paris, partilhando uma enorme tristeza solidária para com familiares e amigos.

Não importa a distância, todos nos sentimos atingidos por estilhaços de perda e de ameaça aos principais valores da grande Família a que temos mais intensamente a certeza de pertencer: uma Humanidade capaz de se transpor, superando o ódio, a obsessão e o terrorismo para continuar a proclamar, a plantar e a fazer reproduzir no planeta Terra, os valores de respeito pela individualidade e pelo multiculturalismo, pela pluralidade de opinião e de religião, ou tão simplesmente, como ditam os ideais da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade!

"Metaphorá", sua matriz

Na minha adolescência, a imaginação e a sensibilidade brincavam juntas. A escrita permitia a expressão e a partilha. As redações da escola constituíam um desafio estimulante e um prazer, sobretudo as mais livres. Os versos eram um recurso espontâneo que reservava para emoções mais intensas.

 Ao entrar no mundo da maioridade e do ensino superior, a sedução pelo factor humano e a vontade de intervir na construção de mudanças sociais através do trabalho, dirigiram a escolha da área de formação.

O impacto foi sentido no primeiro ano do curso, quando me foram pedidos registos escritos de observação da realidade e relatórios. Tratava-se no concreto, de descrever as vendedeiras do mercado da Ribeira do Porto e não a poesia que lhes fosse envolvente. Era a informação pura e dura na luz fria do que se vê e não na incidência calorosa do que se observa por dentro. A subjectividade não tinha lugar, nem a empatia. Nem os reflexos da luz ou os brilhos do rio. As metáforas e o simbólico deveriam embarcar nos rabelos, ficando eu na margem, mais só.

Teria que formar a futura profissional treinando métodos de observação e registo. Teria de resistir à tentação de expressar sensibilidades. Teria sobretudo de subsistir ao sentimento de perda, como se escrever de outra forma representasse um certo abandono de mim mesma. Teria de me reaprender.

O tempo é sábio. Vai passando como as águas do Douro e no entanto o rio permanece, está sempre lá, não deixa de o ser. Também eu deixara correr a vida, reinventando-me, não deixando afinal de ser quem era. E a impressão de perda podia ser transposta.

Metaphorá, a origem grega de Metáfora, significa transposição.

Transposição é largar as emoções e sentimentos profundos para que possam emergir; e à tona deixar que se mesclem com tantos outros sentimentos e emoções que correm nas margens do Trabalho Social; e que então transbordem em escritos que são histórias mais ou menos ficcionadas, com nomes ficcionados.

“Metaphorá” é o caudal dessa partilha.