Virou costas ao pátio
naquele final de tarde cálido. Parecia-lhe até que esfriava. Sentia-se
defraudado com o que acabara por não ver. Achou-se desajeitado no seu jeito de
curioso sem remédio e castigava-se trazendo à lembrança outras situações mal
sucedidas.
A caminho da camarata
recordava um episódio dos seus dez anos, um dos poucos registos que não deixara
qualquer mágoa, apenas umas quantas areias nos olhos, um raspanete com sotaque
brasileiro e a perda de alguns sabores de Verão. Talvez por isso fosse a
lembrança eleita. Era inocente, inócua, até reparadora.
Esse Domingo tinha
sido um dia invulgarmente feliz. Passado “entre as mulheres”, mãe, irmã, uma
tia brasileira e as primas. Em boa verdade a tia era portuguesa, emigrara há
muito para o Brasil, lá casara e nesse ano viera rever a família. Trazia as
filhas já crescidas, essas sim, bem brasileiras no sentido mais visual do termo.
Lembrava-se, apesar de ainda ser puto na
altura, que as achava mesmo boazonas. Olhava para elas e tinha a vertigem de entrar nas imagens
televisivas do Carnaval do Rio, com moças
bronzeadas bem descascadas, grandes decotes, brutas mini saias ou calções
generosos no que deixam por cobrir. Agora à distância parecia-lhe que talvez
fosse fantasia sua de miúdo, acentuar a imagem das primas com todo um colorido
e sensualidade a que simplesmente não estava familiarizado. Talvez até fossem
miúdas mais ou menos banais.
Por uma coincidência
feliz, o pai tinha um jogo de futebol imperdível e a tia tinha-os convidado
para um dia na praia de Espinho, com direito a barraca alugada, o que para si
era coisa de gente fina. No final da manhã, antes dos preparativos do farnel, a
canalha foi ao banho. Primeiro ouviram-se muitos “ai…ui ”, que as águas do
mesmo Atlântico não são desta banda aquelas a que as primas estavam habituadas.
Nada que não se resolvesse rapidamente com umas quantas chapinadelas e um valente chapão do primo. As raparigas ficaram tão ensopadas quanto
determinadas a mergulhar de seguida. Demorou pouco o banho, as moças saíram
queixosas de que a água cortava os ossos, tratando de correr para a barraca
para se secarem e trocarem de biquíni. Não era o caso da irmã, que tinha apenas
um que pedira emprestado a uma amiga. Tinha vergonha do seu velho fato de banho
puído, esticado pelos anos e pela força do seu corpo que largara a menina e já se vestira de mulher. O que faltava a uma, as outras tinham em excesso, sob o
pretexto de estarem sempre enxutas.
Agostinho pensava que
os biquínis eram tão reduzidos que logo logo secariam. As primas queriam era
dar no olho, exibir outro estampado, deixar mais qualquer coisa em evidência…
Enxutas
o caraças! A porem os gajos malucos, isso sim.
O priminho, apesar
dos seus dez anos, não se deixava iludir com floreados tropicais, exíguos mas
ainda assim dispensáveis para quem espreitava uma nesga de oportunidade.
Naquele momento as primas e a irmã tinham baixado o toldo da barraca. Com jeito
e à socapa, ele poderia embevecer-se com o corpo desnudado das raparigas já
mulheres, nos seus esplendorosos 14, 16 e 17 anos. Assegurou-se que a mãe e a
tia estavam sentadas mais à frente, viradas para o mar a tricotar conversas. Deu
meia volta à barraca, aliviou cuidadosamente a areia sobreposta na banda
terminal da cobertura de pano e levantou-a um pouco para mergulhar a cabeça e
então saborear o fruto proibido.
Estava mesmo a pedi-las.
A primeira rapariga a dar-se conta chutou impulsivamente um pedaço de areia e o
voyeur acabou aos saltos e aos berros, num alarido que despertou todas as
atenções.
-Que é isso seu
Agostinho? Não tem nada q`espreitar às mininas! - ralhou a tia no seu português
abrasileirado, enquanto a mãe o interrogava com um olhar de reprensão. Foi a
ela que ele respondeu, com a confirmação do que tentava negar.
- Eu não as estava a espreitar minha mãe, apenas a ver o
que elas faziam!...
Na ausência do pai, o
castigo apenas teve o amargo de boca de ficar sem o gelado da OLÁ e a língua da
sogra a que “às mininas” tiveram direito. Neste último caso custou-lhe menos.
Nem conhecia o sabor e o nome lembrava-lhe as palavras envenenadas que ouvia do
pai contra a avó materna, pelo que se resignava com a ideia de não estar a
perder grande coisa. Já ficar sem o seu predileto Perna de Pau, enquanto as
moças mordiam e lambiam cornetos, deixou-o por momentos, amputado.
Algures no Alentejo, nesta tarde de
sexta-feira, Agostinho resolvera espreitar a chegada da miúda que vinha do Porto
e o pontapé de areia que apanhou foi ter-lhe saído um guna.
Mais
uma vez fizeste bosta Agostinho! Já devias ter aprendido a olhar pela tua vida
sem andares a espreitar a dos outros. Agora perdes a saída à vila, parte da
mesada e curtiste bué. Ficas mas é a bater mal...
A chegada de um novo
residente deixara de ser do seu interesse e Agostinho desmobilizara.
Cabisbaixo, dirigiu-se aos balneários para se confinar à rotina da higiene de
final de dia, antes do jantar. Mas o pensamento não lhe deu tréguas.
Às
tantas inda vais gramar com o guna na tua camarata. Até estava a ficar fixe
desde que o sacana do Alex basou daqui. Mania que mandava em tudo e todos, a
exibir os peitorais tatuados e a
trabalhar p´ró músculo p´ra intimidar… e tu, “o banhas”, o “Michelin”,
consoante a inspiração do tipo, ou lhe fazias as vontades ou lerpavas. Mas o
gajo que chegou pareceu-me um guna de merda, com tamanho de gaja. Tenho é que
lhe falar logo de alto p´ró acagaçar e
impor a lei dos mais velhos. Pelo menos há mais tempo aqui. Fazes-te ao gajo em
força, como te fizeram a ti. Tá-se bem. Tenho pena, é o que um tipo aprende
nestas espeluncas.
O pensamento ia azedando enquanto tomava
banho. E o jorro de água apenas morno e pouco determinado remetia-o para o chuveiro improvisado do
anexo de sua casa e de novo as lembranças como pingas soltas, pesadas.
- Agostinho, despacha-te moço! Se o teu pai chega e dá
c´o depósito sem água, enche-nos de
porrada! Olha que hoje é dia do patrão lhe dar a féria, à vinda desvia-se pela
tasca e sabes no que dá, não sabes? Ele desgraça-nos filho, despacha-te!
E as memórias
faziam-no desligar o chuveiro e largar o banho. De momento não tinha o Alex
para o arrancar de lá, só porque sim,
p´ra chatear a mona, impor respeito, mania que era o maior, sacana de merda, basou, inda bem e nem
sequer o invejo. Deve andar pr´aí a
monte, morto de sede como um cão vadio.
Agostinho encontrara
forma de varrer o pai da mente ocupando-a com um substituto menos nefasto. Pelo
menos o estupor do Alex não
constituía perigo para a sua mãe. Ausente da instituição era suportável tê-lo presente na ideia.
Mas não controlava a intermitência do seu
pensamento e tropeçou de novo no pai. Em boa verdade o velho
continuaria a infernizar a mãe, talvez apenas mais moderado na forma. Afinal
não o tinha a ele em casa como pretexto para armar desacato, perder as
estribeiras e pegar no cinto para dar coça da feia, daquela que dói, mais ainda
na alma que no corpo. E o corpo ficava bem marcado. A mãe acorria para proteger
o rapaz e apanhava por tabela ou sem o ser. A irmã é que fizera bem, cansou-se
e fugiu com o namorado para a Suíça. Nessa altura a mãe passou mal, foi um
imenso desgosto. Como se não bastasse ficar sem a sua menina que era também o
seu braço direito e seu amparo, ainda tinha o marido a cobrar-lhe o sucedido.
- A mãezinha dava
sempre os améns à menina, olha como te agradeceu!... Uma ingrata, é o que é!
Na sua resiliência, a mãe lá foi remendando
aquele rasgão da vida como pôde. Aprendeu a coser a alma com o fio grosseiro do
alívio; a filha já não apanharia por acorrer em sua defesa ou do irmão, que a
moça tinha fibra. Rapariga discreta e humilde, mas inteligente e determinada.
Era a única a enfrentar a besta, oh se era! E a mãe, dividida na ambivalência
do desgosto e do orgulho, acabava por se fortalecer. No íntimo desejava ter
sido como a filha, ter tido a mesma coragem nos seus tempos de menina e moça.
Mas nesses tempos, crescimento e pensamento eram formatados por espartilhos
machistas bem aperreados. Agora estava cansada e velha.
Agostinho também almejava ter a coragem da
irmã. Apesar de sete anos mais novo, sentia que devia ser ele a exibir atributos de bravura do género
masculino, ficando a corroer-se numa certa cobardia. Era como se uma acidez lhe
fosse consumindo a alma. A mãe sempre pusera água na fervura, incutindo nos
filhos mais do que tolerância, subordinação. Fracassara redondamente com a mais
velha. O mais novo crescia, “botava corpo”, mas parecia aquietado. Sem que se
visse, medrava nele um cartucho explosivo de emoções. A submissão ao pai ia-se
distendendo, retorcendo, transfigurava-se; ele próprio tinha dificuldade em
admitir que o que sentia era ódio pelo agressor e revolta pelo laço familiar
imposto pelo destino.
Um dia, por fim,
Agostinho percebeu. Qual laço qual nada, aquilo era um nó de garrote que os
sufocava, lhes roubava o direito a indignarem-se, sequer a sorrir. Nesse dia
começou por implorar ao pai que parasse de insultar e de polear a mãe. O pai
continuou a escancarar armários e a arremessar as panelas em todas as direções.
A alma do rapaz decidiu “botar corpo”, o corpo ganhou alma e empoderou a voz
num confronto imprevisto em que ele era mais ele ou mais outro. Um tal capaz de
enfrentar o pai e de lhe dizer que faria queixa à polícia caso não parasse. O
homem embrutecido pelo álcool nem percebeu o que tinha mudado. Continuou a
abrir e a desventrar as gavetas na cegueira de agarrar a única faca de cozinha
que havia lá em casa e que a mulher religiosamente guardava em sítios
diferentes, à cautela de momentos como aquele. Não fosse o destino transformar
aquela faca numa arma letal.
Entre a dúvida de
deixar a mãe naquelas circunstâncias e a determinação do que dissera ao
agressor, Agostinho fez a escolha e saiu de casa aos berros, como se fosse uma
sirene. Enquanto galgava as ruas, berrava aos quatro ventos para acudirem, até
que chegou ao posto da GNR. Pela primeira vez deixou à porta o medo sufocante
que até então o amarrara e tolhera. Arrancou a camisa de forças que o impedia
de crescer. Entrou possuído pelo ódio e pela revolta e saiu a sentir-se nu,
como que envolto numa imensa bandeira branca de libertação e de paz. Estava
feito. Tinha perdido a cabeça voltando a ganhá-la. Tinha crescido, tomava
consciência e assumia.
Não
hás-de ficar sempre a rir-te de nós, bêbado covarde, cabrão! Deixei de ter
medo, ouviste? Ouviste?
-
Ouviste
a novidade? Oh pá, Agostinho, já sabes das últimas?
Um parceiro de camarata chamava-o para o ali e
agora.
- Chegou uma miúda
nova do Porto!
Agostinho estava
longe daquele monte Alentejano.
-Ouviste, ou tás
mouco meu? É preciso soletrar: Ga-ja no-va, do Por-to…
- Gajo.
- És mesmo Tinhoso
pá!
Desvalorizando a
informação, Agostinho sintonizou o pensamento na alcunha que lhe coubera.
Vistas bem as coisas, até andara com sorte. “Tinhoso” derivara de Agostinho - tinho,
deturpado e desclassificado até Tinhoso. Mas isso desviara as atenções da fatal
associação da alcunha ao físico, o que o libertara do “Banhas” ou “Michelin”. Assim a sua
auto-estima, muito pouco insuflada precisamente por uns quantos pneus flácidos,
escusava de levar em cheio e a toda a hora com o rombo da alcunha. Claro que
outro estatuto, melhor dizendo outro poder, tinha o evadido “Alex”. Estava
mesmo a ver-se que esse tinha imposto um diminutivo do seu próprio nome e ainda
se dava ao luxo de acrescentar “ Alex ou Alexandre o grande, nos momentos mais
solenes”. E quando o dizia, sentia-se na obrigação de dar uma curta aula de
história para avivar a memória dos mais esquecidos ou inferiorizar “os mais
estúpidos que não aprenderam uma porra na escola.” O parceiro de camarata que
agora o chamava, também fora bafejado por alguma sorte. Tinha uma alcunha que
derivava do nome e do facto de ser loiro, sem desvios ou originalidade. Alguém
dissera:
- Oh pá, o gajo é Rui e é russo. É de caras,
fica Ruisso!
E os demais, à falta de melhor, acataram
aquela ausência de inspiração. Claro que depois, alguém descobriu com o uso
umas quantas variantes também pouco criativas.
- Ruisso! Rui-isso,
Rui-aquilo, ao quilo ou à grama, meu?
E a conversa derivava
para desejos ou memórias de manobras clandestinas com drogas.
E o “Ruisso” voltava
à carga:
- Dás-te à cena de
faltar à sessão do doctor, e inda por cima pões em causa a informação aqui do
mois-je? Fica sabendo que a chavala tem apenas catorze aninhos. Na sessão de
grupo a que mister Tinhoso se deu ao luxo de faltar, o sr. doutor
psicólogo pediu freio nos cavalos para a miúda não ser logo
atropelada… Inda por cima fim de semana, doutores ausentes… Bora lá Agostinho,
se te despachares podemos ser os primeiros a chegar ao refeitório, topamos a
miúda e marcamos posição antes dos outros.
Agostinho fazia agora
um esforço por cruzar a informação que lhe chegava do parceiro, com a imagem
recente da chegada a que assistira.
- Oh pá, oh Ruisso,
eu estava no pátio e vi o gajo a chegar,
pareceu-me um guna de merda.
- Sabes que te
digo? O terapeuta é que tem razão, meu: tás mesmo a precisar de ir ao médico
dos olhos. Andas mesmo a ver mal. Inda vais virar caixa d´óculos, para além de
gordo. Vá, não disse nada. Anda mas é
daí Tinhoso!
No caminho para o
refeitório os dois rapazes trocaram mais algumas impressões sobre a visão de
Agostinho que já se dava por desenganado quanto à sua capacidade de ver ao
longe. Mas naquele momento isso passara a ser secundário. Sobrepunha-se a
ansiedade de corrigir a impressão havida, através do contacto direto com uma
miúda nova e isso estava prestes a acontecer. Agostinho percebeu que uma batida
acelerada do seu coração se antecipava ao ritmo da passada. O pensamento
voltava a segredar-lhe conjeturas.
Não
tens emenda, já estuporaste o fim de semana, agora tás todo excitado. Como
dizia o teu avozinho, só por um "rabo de saias". Quer dizer, se tiver
tirado as calças de guna… pela amostra sai-te é uma gaja asquerosa e ficas na
bosta.
E passaram a porta do
refeitório. A Assistente Social tinha ficado para acompanhar as primeiras horas
de acolhimento da nova residente e estava com ela para a apresentar ao grupo
antes do jantar. A jovem estava a ler a ementa afixada no quadro informativo ao
fundo da cantina.
-
Ora
bolas, afinal oh Ruisso, os primeiros a marcar posição… com a AS no encalce da
miúda…
- E eu ia adivinhar
que a Doutorinha ficava p´ro jantar, numa sexta-feira?…
Chegara o momento,
mas de forma bem distinta da que os dois rapazes tinham imaginado, com o
enquadramento da técnica a mediar as apresentações.
- Agostinho e Rui, já
que são os primeiros a chegar venham cá. Como vos tenho por bons rapazes, vou
incumbir-vos do acolhimento da vossa nova colega aqui no refeitório. Tânia
podes chegar aqui, por favor?
Tânia foi-se
aproximando. Usava as mesmas calças de guna
que Agostinho tinha visualizado ao longe. Com uma mão encafuada num bolso, a
outra já sem o boné que segurava
quando saira do carro da polícia que a levara até ali. Andar gingão. Uma das
sobrancelhas tinha-se erguido como que a marcar a guarda de um olhar
supostamente superior e desconfiado.
- Tânia, apresento-te
o Agostinho e o Rui. Podes ficar tranquila que eles vão ser os teus
guarda-costas deste fim de semana e se o digo é porque posso confiar, não é
assim rapazes?
Tânia por um curto instante libertou a
sobrancelha, esboçou um quase sorriso, mas logo se protegeu num vergar de
tronco e baixando a cabeça.
Para os rapazes não
parecia nada evidente que Tânia precisasse de guarda-costas. Estavam tramados,
isso sim, virara-se o feitiço contra o feiticeiro. Era o que lhes faltava terem
que ser ama seca de um guna em versão feminina. Tinham perdido a pica toda. Que
era gaja era, mas dúbia. Ainda por cima tinham sido empossados de betinhos anfitriões. Valeu-lhes a
chegada de uma tal de Sara, brasuca despachadona que reclamou a missão do
acolhimento. Argumentou com a pertença à mesma camarata, experiência e provas
dadas em anteriores receções, não se poupando no que lhe era mais
característico: uma gesticulação tão hiperativa quanto ela, que esgotava
qualquer mortal só de assistir. Pelas vinte horas de uma sexta-feira, a assistente
social não tencionava debater-se com todo aquele voluntarismo, ainda mais que
já salvaguardara o que pretendia, pôr tento nas duas feras que se tinham
revelado mais assanhadas no conhecimento da nova presa. Não contrariando a
iniciativa da intensa Sara, enfatizou o papel dos dois rapazes ali presentes no
controlo do setor masculino. Agostinho e Rui podiam descomprimir, a tarefa
estava atenuada. Também como não se tratava de uma gaja boa, o nível de alerta baixava.
Após o jantar, já a
Assistente Social tinha ido embora, os comentários entre as raparigas iam no
mesmo sentido. Queixavam-se de barriga cheia, por ter chegado uma “machona” do
Porto; parecia-lhes esquisito, por ali era novidade. A vantagem seria não pôr
em risco o tabuleiro de xadrez das seduções e namoricos ao momento.
- Eles não vêm nada
na gaja e ela não quer nada com eles. Pode é chagar-nos a mona por querer
brincadeira connosco. Tá-se bem, leva logo uma lambada que vai parar ao Porto
mais depressa do que se pôs aqui, mesmo com a sirene da bófia a abrir
caminho!...
Numa das camaratas masculinas, já deitados e
antes de adormecerem, Agostinho e Rui retomavam o assunto comentando o fiasco:
- Ouve lá Ruisso, eu
posso estar a ver mal ao longe ou até não, porque de facto a gaja mais parece
um gajo meu… mas tu é que não estás a ver népia ao perto. Então não topaste os
olhos azuis da miúda?
Rui não se tinha
apercebido.
- Ouve lá, a miúda é
mesmo deslavada, nem ponta de maquilhagem meu. Sem as tintas todas que as outras metem, aquela coisa preta
em cima dos olhos, o eye não sei das
quantas… se tem olhos azuis nem se topa. Só lhe vi uma sobrancelha com a gaja a
armar-se em mauzão e a cabeça rapada com
crista de gunão. Olha até fiz verso … oh Tinhoso, vejamos o lado positivo desta
cena: afinal vês mesmo bem, meu, não vais precisar d´óculos. Quanto ao resto,
melhores dias virão, quero dizer, melhores gajas, miúdas boas. Boa noite!
E fechou a luz.
Agostinho fechou os
olhos e voltou a abrir como quando era criança e o sono apertava, mas ele não
queria perder pitada da história que a mãe lhe contava. Sabia que se fechasse
os olhos era o “João Pestana” quem ganhava e ele perdia a magia daqueles contos
do “Ali Babá e os quarenta ladrões”. A mãe dizia “Abre-te Sésamo…” e naquela
noite de sexta-feira, no escuro daquele quarto perdido algures por Montes
Alentejanos, Agostinho queria que essa mágica
acontecesse.
- Lembras-te, meu
filho, uma vez que fomos a uma praia com uns pedregulhos enormes, Lavadores…
eras inda um fedelhito…
Agostinho não estava
seguro se a imagem que guardava era lembrança ou fruto da imaginação espicaçada
pelo conto.
- Sim mãe, um rochedo
enorme…
E a pedra gigantesca
inacreditavelmente parecia mover-se…
Aconteceu. Agostinho
vislumbrou aquele breve instante em que Tânia baixara a guarda da sobrancelha,
esboçara um quase sorriso e acendera duas luzes azuis que só ele tinha visto.
Deleitado, voltava a abrir e a fechar os olhos provocando o golpe mágico de ver
e rever esse momento. Queria perceber a intensidade daquele olhar. Não
conseguia decifrar se era ténue e doce, se incendiário e provocador. Uma ou
outra coisa o excitava, mas queria perceber. Primeiro era o golpe de
sobrancelha que distraía, depois os lábios a prometerem um sorriso e logo a
cabeça da miúda baixava resguardando as duas pedras preciosas. Tânia, Agostinho repetia o nome para si,
apenas com o movimento da boca, em surdina, como que a testar o sabor que
deixava…
Já não tinha dúvidas.
Fora ele a apanhar a informação da chegada, a decidir faltar à sessão de grupo,
toda aquela ansiedade, depois a baralhação do guna…. mas aquele furtivo olhar
azul nem o espertalhaço do Ruisso cocara. Havia sim um tesouro escondido e só
ele o sabia. Agostinho queria chegar àquelas duas safiras, seriam suas. E
voltava a tentar.
Abre-te
Sésamo…
Mais uma e outra vez,
umas quantas até que adormeceu.
Lindo texto...Parabéns Paulinha!!
ResponderEliminarLindo texto...Parabéns Paulinha!!
ResponderEliminarlindo!!! que bela partilha
ResponderEliminar