- Doutora,
dê-me essa rosa!...
E o meu pensamento inebriou-se como sob
efeito de um perfume. Pintou-se de verde esperança ou talvez de ilusão. A cor
da rosa combina com ilusão… Seria aquela rosa uma espécie de código de acesso? O
seu caule tinha ainda o calor de quem ma oferecera há momentos atrás e eu
saboreava o gesto de carinho. Mas a adolescente que a pedia, mais com os olhos
do que com as palavras, fazia-o com a intensidade de quem pede para sobreviver.
E se aquela rosa enraizasse o vínculo com Tânia e assim florissem botões de
confiança? Ou uma almejada tranquilidade…
Os três andares sólidos do edifício
estremeciam e por toda a rua soavam ecos impensáveis de uma voz que pretendia
ser temível. A voz projetava intenções em desalinho de uma adolescente
intranquila. Cabelo rapado, crista central no topo do crânio, quem conhecera a
versão feminina chorava os longos cabelos loiros. “ Tão bonitos que eram, como
ela, com este rostinho perfeito e estes olhos tão azuis…” O traço inspirado da
natureza que lhe esculpira o rosto sobrepunha-se ao visual de machona, mas o teor do comentário não a
animava, bem pelo contrário; o azul dos olhos parecia incendiar-se de raiva e
ela queria ser ele, olhando primeiro de
soslaio, fitando depois com desprezo em busca de mais motivos de fúria.
-
Doutora, quero ir lá fora cravar um cigarro. Eu bato mal sem cigarros. Vou-me
passar se não arranjo tabaco!
E o tom subia num crescendo de ameaça,
as portas eram abertas a pontapé, fechadas de supetão e o estrondo aliava-se à
voz numa intenção pretensamente poderosa. Parecia querer deitar abaixo os três
pisos do edificado.
Mas naquela manhã e na presença da rosa,
a voz tinha a maciez de uma pétala.
-
Dê-me essa rosa Doutora...
Seria Tânia seduzida por qualquer flor
ou apenas por rosas? Porventura o gesto de replicar a oferta daquela flor me
levaria a sensibilidades escondidas? A expectativa de ambas era intensa. A rosa
seria sua.
Pediu-me um copo de água para dar de beber
à flor. A seguir esperaria. A desejada rosa não era para si, não a levaria para
o seu quarto, seria oferecida a outras mãos quando chegassem da escola. Tânia
queria presentear aquela que desejava como namorada, selando o compromisso com
uma flor. E o azul dos olhos acendia como se por paixão.
Ou por ciúme. O seu telemóvel telintou e
um sms contou-lhe más novas. A alma deixou-se envenenar e num instante Tânia resvalava,
precipitando-se num poço escuro de emoções. A voz engrossou para se fazer
ouvida e do fundo chegava a blasfémia de uma dor de traição. Num gesto
intempestivo o copo foi varrido e voou, quebrando-se no impacto com o chão. A rosa
era arrancada do seu nicho protector e lançada sem dó para o caixote do lixo. Aí
ficou, incrédula e ferida.
Para além do gesto, as palavras eram
acutilantes. Projetavam-se como o copo e os estilhaços atingiam-nos o
pensamento. Enraivecida, Tânia persistiu no seu jeito todo poderoso, perdendo a noção do corpo adolescente e
falível. Ao bater estrondosamente a porta esqueceu-se da mão, trilhou um dedo e
todo aquele equívoco sufocou. Tânia chorava como uma criança pequena. A
sobrancelha deixou de infernizar o azul da íris e este podia então ser apenas
cor na aguarela de uns olhos chorosos.
Tanto equívoco em apenas catorze anos de
existência. E aquela capa de suposto poder que de repente envergava, fustigava tudo
e todos em redor. Deixava-me confusa. No lixo, a cor da rosa desmaiara. Na
minha alma, a perplexidade apagava a ilusão.
Uma, outra e mais adolescentes viriam e
todas seriam sujeitas ao olhar esfaimado de Tânia e ao seu crivo de predadora.
Seguiam-se amores, desamores, ciúmes, raivas. Como se a inquietude tivesse cio.
Fragilizada, por vezes parecia querer libertar-se
daquela fantasia esgotante de poder, prometendo ser apenas adolescente. Telefonava
ao padrinho, inventava um desejo próprio da idade e pedia dinheiro para gomas,
um gelado, um lanche no MacDonald's, e esperava que o peixe ferrasse o isco. O
padrinho esforçava-se em manter a ligação, mesmo que por um fio de mentira.
Mas as promessas duravam o tempo de um
cigarro, consumiam-se com a nicotina. O padrinho cansou-se, cortou o fio e Tânia ficou mais à
deriva. Privada de tabaco, flipava e
fugia. Na rua haveria de pintar o azul dos olhos com mais ou menos
cumplicidade, mais ou menos sedução, cravando tabaco ou droga.
- Só
cravo tabaco. Ganza é com uns connects
que eu tenho, mas não é para mim, é pr´ós meus amigos lá do bairro…
- Amigos Tânia? Ricos amigos de Peniche.
- Posh,
sei lá onde isso fica!
E o azul de vidrado brilhante alertava.
No laboratório de análises a colheita haveria de confirmar. Tânia era refém de catorze anos de
equívocos familiares e apesar da negação, embrulhava-se na mesma teia de
dependências que consumira os progenitores. Tinha que ser resgatada dos connects que julgava possuir e a possuíam.
Teria que ir para bem longe da cidade e da imagem que esta lhe projetava de si
mesma.
As outras bem a avisavam que andava a
pisar o risco e que de repente acordava um dia com a bófia no quarto para a levar. Nem teria tempo de saber para onde,
até podia ir parar às ilhas. E então como fugiria? Tânia sacudia-se na sua capa,
querendo parecer pouco ou nada temerosa.
Até que o dia chegou.
Chegavam ao pátio as fragrâncias de um
final de dia cálido em montes Alentejanos. Convidavam à evasão. Era sexta-feira
e as atividades da semana estavam prestes a dar as despedidas. Quem dera a
Agostinho ser ele a despedir-se da Comunidade onde estava há uns quantos meses.
- Fixe era agora dar de frosques e não ter
que gramar a seca da dinâmica de grupo com o chibo do Psicólogo. Cenas em grupo,
entrevistas, o tipo bem nos quer convencer que aquele paleio todo é “confidencial”,
uma ova! Na volta está o manda chuva desta merda a tramar-nos com
bocas mafiosas, castigos… e a A.S., pouco cuscas essa também… não que façam
mossa, até nem é o caso, mas por via das dúvidas, Agostinho, não confies em
ninguém, muito menos em doutores. Tá-se bem ao pé deles é p´ra lhes apanhar conversas,
sacar informações de interesse; e por pensar nisso, como é que ia deixando
passar “a chegada de uma adolescente do
Porto na sexta à tarde”. Hoje é sexta, dizem que as gajas do Norte são boas, então
as de Ermesinde…
Agostinho não fazia a menor ideia onde ficava
Ermesinde, ou quem o tinha dito, mas aquilo vinha-lhe à cabeça e deixava o pensamento
à solta; haveria de ser ele o primeiro a
comê-la, quanto mais não fosse com os olhos, já que os sentidos estavam
atiçados. Naquele final de dia e de semana, o corpo pedia-lhe mais. Sentia-se
predisposto, se não a pular a cerca, pelo menos a pular fora de si e da rotina.
-
Ia bem uma pinadela com uma miúda nova, mas logo no primeiro dia da gaja… flipava
por um charro, mas não dá p´ra bazar daqui.
Não
se considerava um crânio, mas não se tinha por estúpido e sabia que para fugir
era preciso um plano mais intelectual. Sentia-se com ganas mas isso não chegava.
–
A cena até pode ser bué da fixe: sou o
primeiro a topar a chavala, trocamos uns olhares e quem sabe… com sorte, logo quando os monitores já roncarem … a miúda até
pode ter trazido umas ganzas. Que se fodam os créditos negativos da semana, está
decidido, fico aqui à espera.
Seria o primeiro a farejar a presa e a
marcar território.
A
quebra de luz do final de dia apagava o pátio, intensificando os cheiros e a
expectativa. A sessão de grupo já era e
teria que arcar com as consequências de ter faltado; mais um fim de semana sem ir
à vila e provável redução na mesada.
- A gaja ainda não chegou e já me está a ir ao
bolso.
Assim
iam os pensamentos de Agostinho, quando a engrenagem enferrujada do imenso
portão alentejano iniciou o seu lento cante, num compasso esforçado de abertura.
Abre-te
Sésamo, e
quase uma reminiscência feliz de contos que a mãe desenterrava da sua meninice.
Mas já não havia tempo para nostalgia, estava empolgado com a entrada do carro
da polícia e a chegada da nova residente.
-
Mas o carro e os gajos não são da bófia… ah são dos que andam por aí sem farda
e depois enfarda o pessoal com a judite
no lombo. É um vê se te avias ou, já foste! Finalmente, porra! Abram lá a porta
e saquem da miúda, meus!
A
uns quinze metros de distância, Agostinho observava, ansioso. Da porta traseira
da viatura saía uma figura de cabelo
rapado, apenas um tufo com gel a
encristar-lhe o topo da cabeça, cap
seguro numa mão, a outra metida num bolso das calças de ganga de gancho descaído.
-
Calças
à mijão. Flipei: é um guna! Foda-se, devo ter ouvido mal.
Tânia observava de soslaio e sobrolho
carregado o recinto exterior da Instituição onde chegara naquele fim do mundo.
Ecos das miúdas a bufarem-lhe que acabaria num desses campos de concentração de
drogados, aturdiam-lhe a cabeça. Nem ouvia o que os agentes lhe diziam. Parecia
ter perdido a sua capa de poder na viagem.
Por fora tentava com todas as forças manter
uma das caras temíveis mais treinadas, como se fulminasse desprezo e ameaça em
redor.
Por dentro mais um espinho irrompia, rasgando-lhe
a alma. Tânia não podia chorar.
Sem comentários:
Enviar um comentário