sexta-feira, 24 de junho de 2016

Tânia - Rosa ou espinho?

- Doutora, dê-me essa rosa!...

E o meu pensamento inebriou-se como sob efeito de um perfume. Pintou-se de verde esperança ou talvez de ilusão. A cor da rosa combina com ilusão… Seria aquela rosa uma espécie de código de acesso? O seu caule tinha ainda o calor de quem ma oferecera há momentos atrás e eu saboreava o gesto de carinho. Mas a adolescente que a pedia, mais com os olhos do que com as palavras, fazia-o com a intensidade de quem pede para sobreviver. E se aquela rosa enraizasse o vínculo com Tânia e assim florissem botões de confiança? Ou uma almejada tranquilidade…

Os três andares sólidos do edifício estremeciam e por toda a rua soavam ecos impensáveis de uma voz que pretendia ser temível. A voz projetava intenções em desalinho de uma adolescente intranquila. Cabelo rapado, crista central no topo do crânio, quem conhecera a versão feminina chorava os longos cabelos loiros. “ Tão bonitos que eram, como ela, com este rostinho perfeito e estes olhos tão azuis…” O traço inspirado da natureza que lhe esculpira o rosto sobrepunha-se ao visual de machona, mas o teor do comentário não a animava, bem pelo contrário; o azul dos olhos parecia incendiar-se de raiva e ela queria ser ele, olhando primeiro de soslaio, fitando depois com desprezo em busca de mais motivos de fúria.

- Doutora, quero ir lá fora cravar um cigarro. Eu bato mal sem cigarros. Vou-me passar se não arranjo tabaco!

E o tom subia num crescendo de ameaça, as portas eram abertas a pontapé, fechadas de supetão e o estrondo aliava-se à voz numa intenção pretensamente poderosa. Parecia querer deitar abaixo os três pisos do edificado.

Mas naquela manhã e na presença da rosa, a voz tinha a maciez de uma pétala.

- Dê-me essa rosa Doutora...

Seria Tânia seduzida por qualquer flor ou apenas por rosas? Porventura o gesto de replicar a oferta daquela flor me levaria a sensibilidades escondidas? A expectativa de ambas era intensa. A rosa seria sua.

Pediu-me um copo de água para dar de beber à flor. A seguir esperaria. A desejada rosa não era para si, não a levaria para o seu quarto, seria oferecida a outras mãos quando chegassem da escola. Tânia queria presentear aquela que desejava como namorada, selando o compromisso com uma flor. E o azul dos olhos acendia como se por paixão.

Ou por ciúme. O seu telemóvel telintou e um sms contou-lhe más novas. A alma deixou-se envenenar e num instante Tânia resvalava, precipitando-se num poço escuro de emoções. A voz engrossou para se fazer ouvida e do fundo chegava a blasfémia de uma dor de traição. Num gesto intempestivo o copo foi varrido e voou, quebrando-se no impacto com o chão. A rosa era arrancada do seu nicho protector e lançada sem dó para o caixote do lixo. Aí ficou, incrédula e ferida.

Para além do gesto, as palavras eram acutilantes. Projetavam-se como o copo e os estilhaços atingiam-nos o pensamento. Enraivecida, Tânia persistiu no seu jeito todo poderoso,  perdendo a noção do corpo adolescente e falível. Ao bater estrondosamente a porta esqueceu-se da mão, trilhou um dedo e todo aquele equívoco sufocou. Tânia chorava como uma criança pequena. A sobrancelha deixou de infernizar o azul da íris e este podia então ser apenas cor na aguarela de uns olhos chorosos.

Tanto equívoco em apenas catorze anos de existência. E aquela capa de suposto poder que de repente envergava, fustigava tudo e todos em redor. Deixava-me confusa. No lixo, a cor da rosa desmaiara. Na minha alma, a perplexidade apagava a ilusão.

Uma, outra e mais adolescentes viriam e todas seriam sujeitas ao olhar esfaimado de Tânia e ao seu crivo de predadora. Seguiam-se amores, desamores, ciúmes, raivas. Como se a inquietude tivesse cio.

Fragilizada, por vezes parecia querer libertar-se daquela fantasia esgotante de poder, prometendo ser apenas adolescente. Telefonava ao padrinho, inventava um desejo próprio da idade e pedia dinheiro para gomas, um gelado, um lanche no MacDonald's, e esperava que o peixe ferrasse o isco. O padrinho esforçava-se em manter a ligação, mesmo que por um fio de mentira.

Mas as promessas duravam o tempo de um cigarro, consumiam-se com a nicotina. O padrinho  cansou-se, cortou o fio e Tânia ficou mais à deriva. Privada de tabaco, flipava e fugia. Na rua haveria de pintar o azul dos olhos com mais ou menos cumplicidade, mais ou menos sedução, cravando tabaco ou droga.

- Só cravo tabaco. Ganza é com uns connects que eu tenho, mas não é para mim, é pr´ós meus amigos lá do bairro…

- Amigos Tânia? Ricos amigos de Peniche.

- Posh, sei lá onde isso fica!

E o azul de vidrado brilhante alertava. No laboratório de análises a colheita haveria de  confirmar. Tânia era refém de catorze anos de equívocos familiares e apesar da negação, embrulhava-se na mesma teia de dependências que consumira os progenitores. Tinha que ser resgatada dos connects que julgava possuir e a possuíam. Teria que ir para bem longe da cidade e da imagem que esta lhe projetava de si mesma.

As outras bem a avisavam que andava a pisar o risco e que de repente acordava um dia com a bófia no quarto para a levar. Nem teria tempo de saber para onde, até podia ir parar às ilhas. E então como fugiria? Tânia sacudia-se na sua capa, querendo parecer pouco ou nada temerosa.

Até que o dia chegou.

Chegavam ao pátio as fragrâncias de um final de dia cálido em montes Alentejanos. Convidavam à evasão. Era sexta-feira e as atividades da semana estavam prestes a dar as despedidas. Quem dera a Agostinho ser ele a despedir-se da Comunidade onde estava há uns quantos meses.

- Fixe era agora dar de frosques e não ter que gramar a seca da dinâmica de grupo com o chibo do Psicólogo. Cenas em grupo, entrevistas, o tipo bem nos quer convencer que aquele paleio todo é “confidencial”, uma ova! Na volta está o manda chuva desta merda  a tramar-nos  com  bocas mafiosas,  castigos…  e a A.S., pouco cuscas essa também… não que façam mossa, até nem é o caso, mas por via das dúvidas, Agostinho, não confies em ninguém, muito menos em doutores. Tá-se bem ao pé deles é p´ra lhes apanhar conversas, sacar informações de interesse; e por pensar nisso, como é que ia deixando passar  “a chegada de uma adolescente do Porto na sexta à tarde”. Hoje é sexta, dizem que as gajas do Norte são boas, então as de Ermesinde…

Agostinho não fazia a menor ideia onde ficava Ermesinde, ou quem o tinha dito, mas aquilo vinha-lhe à cabeça e deixava o pensamento à solta; haveria de ser ele o primeiro a comê-la, quanto mais não fosse com os olhos, já que os sentidos estavam atiçados. Naquele final de dia e de semana, o corpo pedia-lhe mais. Sentia-se predisposto, se não a pular a cerca, pelo menos a pular fora de si e da rotina.

- Ia bem uma pinadela com uma miúda nova, mas logo no primeiro dia da gaja… flipava por um charro, mas não dá p´ra bazar daqui.

 Não se considerava um crânio, mas não se tinha por estúpido e sabia que para fugir era preciso um plano mais intelectual. Sentia-se com ganas mas isso não chegava.

A cena até pode ser bué da fixe: sou o primeiro a topar a chavala, trocamos uns olhares e quem sabe… com sorte, logo quando os monitores já roncarem … a miúda até pode ter trazido umas ganzas. Que se fodam os créditos negativos da semana, está decidido, fico aqui à espera.

Seria o primeiro a farejar a presa e a marcar território.

A quebra de luz do final de dia apagava o pátio, intensificando os cheiros e a expectativa. A sessão de grupo já era e teria que arcar com as consequências de ter faltado; mais um fim de semana sem ir à vila e provável redução na mesada.

- A gaja ainda não chegou e já me está a ir ao bolso.

Assim iam os pensamentos de Agostinho, quando a engrenagem enferrujada do imenso portão alentejano iniciou o seu lento cante, num compasso esforçado de abertura.

Abre-te Sésamo, e quase uma reminiscência feliz de contos que a mãe desenterrava da sua meninice. Mas já não havia tempo para nostalgia, estava empolgado com a entrada do carro da polícia e a chegada da nova residente.

- Mas o carro e os gajos não são da bófia… ah são dos que andam por aí sem farda e depois enfarda o pessoal  com a judite no lombo. É um vê se te avias ou, já foste! Finalmente, porra! Abram lá a porta e saquem da miúda, meus!

A uns quinze metros de distância, Agostinho observava, ansioso. Da porta traseira da viatura  saía uma figura de cabelo rapado, apenas um  tufo com gel a encristar-lhe o topo da cabeça, cap seguro numa mão, a outra metida num bolso das calças de ganga de gancho descaído.

- Calças à mijão. Flipei: é um guna! Foda-se, devo ter ouvido mal.

Tânia observava de soslaio e sobrolho carregado o recinto exterior da Instituição onde chegara naquele fim do mundo. Ecos das miúdas a bufarem-lhe que acabaria num desses campos de concentração de drogados, aturdiam-lhe a cabeça. Nem ouvia o que os agentes lhe diziam. Parecia ter perdido a sua capa de poder na viagem.

Por fora tentava com todas as forças manter uma das caras temíveis mais treinadas, como se fulminasse desprezo e ameaça em redor.


Por dentro mais um espinho irrompia, rasgando-lhe a alma. Tânia não podia chorar.

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