domingo, 17 de janeiro de 2016

Cândida - O pássaro na mão

 “Cândida” não o era. Quando menina pequena poderia ter parecido um anjinho, como desses que caminham nas procissões por altura das festas religiosas: loirinhos, pele branca, olhos azuis. Só não teria cabelos aos caracóis, mas devia atrair a atenção pela sua cândida beleza, talvez não menos pela sua inquietude.

Que Cândida atraía, sabia-o bem. Não fosse pelos dotes físicos naturais, era pelo exagero da pintura atiçada nos olhos e nos lábios fartos, que dispensavam todo aquele encarnado do baton na sedução de machos famintos. Era bonita, mas a maquilhagem grosseira não o deixava perceber com clareza, indiciando um tipo de comportamento, sem que fosse preciso assistir ao jeito espalhafatoso do maneio ou expor os ouvidos aos desaforos do seu palavreado.

 A menina então crescida, fazia por ser provocadora de todas as formas possíveis e impensáveis, infringindo regras e brincando com o fogo. Uma vez fê-lo a sério; deu-lhe na veneta, desafiou uns quantos para testemunharem a façanha e ateou fogo a um pinhal próximo do seu bairro. Apenas um frasco de álcool e fósforos e a vontade de ver o circo a arder. Deu-lhe gozo o aparato dos bombeiros e todo aquele espectáculo ser obra sua - era fixe! Reduzir a cinzas uns quantos metros quadrados do pouco verde em avançada extinção na zona, não lhe tirava o sono. Estava habituada ao pinhal urbano onde habitava, uma plantação densa de torres, envergonhadas do colorido excessivo de origem e do desbotado actual, indecente. Envergonhadas as torres, Cândida não.


Quem queria ela chocar e porquê? Quem crucificar naquela, como em tantas outras provocações?

O pai só casualmente lhe ligava, mais dedicado ao vinho do que aos filhos (três raparigas e um rapaz, de permeio). De quando em vez lá se lembrava de a assediar com algumas moedas que Cândida aproveitava para desvarios e tabaco. Ela sabia o café da zona onde o cota parava e isso bastava-lhe para o usar como arma de arremesso, quando era seguro ser a mãe o alvo a atingir.

Joaquina, mulher grande, ar envelhecido e desleixado, provavelmente interessante em jovem, descuidara-se com uma vida da qual parecia ter tido que se arrepender. Estafada por dissabores que gastam e desgostam, que não matam mas moem, ganhara marcas que se antecipam à idade. Arrependia-se de ter deixado as duas meninas mais velhas à toa, sem regras nem bons exemplos. A primeira saíra de casa de namorado a tiracolo, depois de lho ter roubado (à mãe). O dito cujo também lhe saíra um bom traste, já ia fazendo a vida negra à moça e o modelo prometia repetir-se. Quanto a Cândida, era verdade que Joaquina se esforçava agora por lhe dar educação, impondo-se a si própria bons princípios e hábitos respeitáveis. Tinha saltado fora de um casamento abalroado por aventuras paralelas, arrombado pelo desrespeito mútuo e maus tratos; conseguira no naufrágio, depois de outras soluções errantes, agarrar-se à única prancha de sobrevivência honesta, o trabalho. Tentava com o pouco tempo e a pouca autoridade disponíveis segurar os filhos, assumindo finalmente que precisavam da sua orientação. Estava certa que perdera a parada com a mais velha. Suspeitava ter já ultrapassado o prazo de validade reconhecido por aquela segunda menina, tão apressada em ser fisicamente mulher-loira, decote pronunciado, lábios oferecidos e olhos azuis borrados de pintura.

Era sabido que Cândida já oferecera de si mais do que os lábios, na noite suspeita daquelas ruas, entre as torres desmaquilhadas. Provavelmente a troco de prazer fácil, imediato e pago. Tinha que alimentar o telemóvel, o vício do tabaco e o role das provocações ao que restava da autoridade da mãe. Seguramente, era quem queria ferir quando fugia sem deixar rasto nem mensagem no telemóvel. Ainda mais, sabendo que a progenitora estava a braços com o tribunal que de quando em vez a chamava para rever o cumprimento da medida de promoção e protecção.

Cândida não era parva nenhuma, embora quisesse mostrar-se sem escrúpulos e até, quem sabe, destituída. Ao fim e ao cabo, na escola não dera nada e não passara do 5º ano. No seu bairro também não era excepção à regra, apenas dava corpo ao padrão de insucesso e de absentismo escolar. As torres envergonhadas, empilhavam um conjunto imenso de apartamentos, famílias e carências de toda a espécie. Como trepadeiras em busca do sol, as crianças medravam envolvidas nesses emaranhados de desesperança, não dando conta do seu recado no contexto escolar.
O desajuste de Cândida conduzira o caso ao apoio educativo, daí à Comissão de Protecção de Menores, seguindo-se-lhe o tribunal. A definição do problema passava pelos meandros de um contexto familiar negligente, mais do que por algum diagnóstico clínico da menina.
E a menina grande, repontona e grosseira, sabia comparecer em tribunal apenas loira e de olhos azuis, de ingénuo rabo-de-cavalo, gancho a mais ou a menos consoante as farripas menos ou mais soltas e rebeldes, como ela. Em vez da super mini saia e da soca de tacão, umas calças de ganga apresentáveis e uns ténis decentes. A atitude abrandava e o discurso parecia de adolescente disposta a ser assertiva e cumpridora da orientação judicial: desenvolver competências para uma inserção ajustada na sociedade.
Alternando o desafio e a insolência com uma aparente e passageira sensatez, Cândida sabia que a prevalência da provocação lhe garantia ingresso certo em colégio educativo, como interna. Vistas bem as coisas, preferia dar por certo ter a mãe a acordá-la todos os dias, nem que fosse pelo telemóvel; não ter que se dar ao incómodo de reagir ao despertador e muito menos à maçada de o programar; ficar em casa a distender-se pelos sofás gastos do apartamento, quando lhe faltava a energia para escapadelas de gata assanhada pelas ruas; ter a irmãzita empenhada em lhe contrariar a lógica da irresponsabilidade, lembrando-lhe deveres, regras e tarefas a partilhar pelos quatro da casa: contar com o irmão que tinha bom cabedal e lhe servia para intimidar uns quantos chavalos que ela não curtia.
Por isso nas vésperas de ida a tribunal Cândida tendia a aproximar-se do desejável. Cumprida aquela representação, não tardava em resvalar pela falta de decoro e por todo o tipo de incumprimento. Voltava a ser a felina vadia e perversa de olhos acesos na noite, à procura do castigo, que afinal era mais seu do que de quem quer que fosse sua intenção esgadanhar.
Houve períodos em que quase nos fez crer, que afinal deixara de investir no azul carregado à volta dos olhos e que eram só as duas íris de azul claro adolescente e os contornos de um corpo juvenil, que naturalmente exibia.
Teve o pássaro na mão… a oportunidade de um estágio a poucos metros de casa, num edifício baixo na rua em que vivia, uma espécie de clareira naquela mata de cimento armado. A pressa matinal era atenuada pelo facto de estar ao virar da esquina; só tinha que deixar o vale dos lençóis, somar-lhe o tempo da higiene e arranjo pessoal, depois o mata-bicho e mais nada. Nem cálculos de trajectórias até uma qualquer paragem de transporte público, nem de duração de obrigatória viagem para chegar ao destino. O estágio sorria-lhe facilitado. Tanto, que achou que mais não seria demais, passando a chegar atrasada; um dia uma meia hora, outra meia mais adiante, meio dia (porque não?), até chegar ao cúmulo do atraso a cem por cento, ao zero de comparência, nem sequer lá pôr os pés!
Porquê Cândida? Até ia bem no desempenho, sabia que gostavam dela e também ela parecia ou dizia gostar. Porquê resvalar sorrateiramente para o nada, nada dizendo, nem uma satisfação?!
Seriam o abandono e o silêncio a melhor forma de provocar? Seria afinal o colégio interno, o anseio da menina grande, tão pequena de regras e de responsabilidade? Quereria Cândida não ter como transgredir, comandada e treinada como autómato sem arbítrio?
Contida num uniforme imposto que a tornasse igual às demais, deixaria de se fazer notar o maneio excessivo das ancas, o arrastar brejeiro das socas, o peito empoleirado no decote?
Despojada do que superficialmente mais tinha de seu, porventura chegaria mais perto da identidade do seu nome: Cândida…?
Não o viemos a saber. Deixou o pássaro fugir.

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