Três
da tarde. Bairro social de Pedroso, bloco 4, entrada 8, rés do chão. Não era
por mero acaso.
Acasos porventura, episódios de vida contados
avulso como peças dispersas de um rosário, quebrado o fio condutor de quem lhes
dá, ou já deu, a alma.
Três
e cinco. Ninguém respondia ao toque da campainha que tangia já descrente. Escapavam
ruídos pelas frinchas da porta de cada apartamento, pairando no átrio uma
sonoridade residual. Só o rés do chão C guardava silêncio, adormecido em hora
de sesta.
Preguiçosa
demora por detrás daquela porta, mas a campainha teimou em cumprir a missão.
Olívia
apareceu a custo, mal se sustendo em pé, pendurada nos seus magros quarenta e
nove anos. Não tardou a que se rendesse, desfiando casos e acasos, afinal,
contas presas do seu rosário de vida. De pijama e olhar xanax, desabafou ter
tomado três comprimidos. Nada a que não estivesse habituada, para quem somava
já seis lavagens ao estômago. E uma vez arrancada da lura e da letargia, não se
ficava por aí, tinha afinal muito que contar. Tinha até troféus de guerra para
exibir. Bastava levantar as pontas do pijama, desnudar o ventre, e logo
sobressaía aflitiva, a cicatriz que atestava do violento acidente de há dois
anos atrás. E o rosário foi ganhando corpo, revelando-se deformado e dorido tal
como a cicatriz. Já não eram contas, eram feridas acumuladas, sobrepostas sem
cura nem descanso.
Precisava
de um cigarro para lhe aliviar o stress,
abrir uma nesga de claridade no seu horizonte mental cinzento - Também ia bem uma cola, ajuda a vir à tona,
deve ser do gás - E acende-se-lhe um sorriso no rosto, um quase brilho
garoto nos olhos que por segundos esquecem o efeito xanax e a velhice
precocemente instalada.
Mas
o rendimento mínimo mal lhe dá para pagar as dívidas, quanto mais para esses
devaneios. Aos serviços municipais de água deve cento e vinte contos que jorram em abundância na sua cabeça,
enquanto há quatro meses, nem uma gota pinga nas torneiras lá de casa - Só peço que me deixem pagar em prestações
até dez contos, mais não consigo - E Olívia só consegue fixar-se num olhar
perdido e baço, presa a emaranhados de desesperança.
Recupera
e resolve mostrar o apartamento. Roda cada torneira para provar que não tem
gota de água. Mas tem o T3 esmerado e antes que lhe falhe a genica, abre
armários, puxa gavetas, orgulhosa do asseio das roupas. Por falar nisso e
porque a conversa é como as cerejas, vem-lhe à ideia uma arrelia menos
sufocante, mesmo assim a atolar-lhe a cabeça em nervoso miudinho; a falta de
roupa do seu Paulino - Inda por cima, o
rapaz é danado de esquisito!
Paulino,
o único filho que lhe resta no T3. Os outros habitam as fotos, com ou sem
moldura. Alguns dos mais velhos já lhe deram netos. As três mais novas,
retiradas pelo tribunal, regressam de 15 em 15 dias ao fim de semana. Nas
vésperas de receber as cachopas, Olívia trata de compor o armário com géneros
alimentares que pesam mais na conta da loja da esquina do que nas prateleiras
lá de casa. E vai esticando a paciência do merceeiro – O sr. Zé já tá pelos cabelos de vender fiado. Falo-lhe ao coração,
explico que vêm as meninas… o Paulino também já sabe, enquanto elas cá estão,
nada de fumar ganza em casa. Em casa pois! Prefiro que ele fume no quarto do
que ande pr´ aí a vadiar pela rua. Não dorme sem a passa e eu tenho que tirar à
minha boca, ao arroz não, mas ao tabaco e à cola, que remédio! Por quinhentos
paus compra-se aí um nico a um cigano. Vai dando p’ro moço se contentar.
E
a mãe não deixa de lhe meter a chupeta, o menino tem de adormecer.
Falando
em ciganos, não ficasse a ideia de que lhe aliviam o quotidiano; pelo
contrário, são motivo de pesadelo, pretexto para engolir e repetir dois ou mais
comprimidos - As que mais me custaram a
criar, a Carina e a Raquel, ambas fugidas de casa já p’ra dois meses por ameaça
de morte desses sacanas… de morte!
Muito
mais do que a roupa a menos do Paulino, e mais do que a carência de água em
casa, a ausência nela das filhas, seguramente um vazio maior e mais profundo,
aquele que justificava o seu traje de sono em plena tarde e lhe vergava a
figura.
Quatro horas. Olívia já se aquietara no sofá,
encolhida e de pernas dobradas por baixo do corpo, lembrando uma criança. A
postura não condizia com os sulcos desenhados no rosto, nem a voz, remanescente
de uma juventude estafada. O timbre confirmava quase uma menina, decerto uma
mulher suave e meiga, da vida pedindo apenas afecto e companhia.
Julguem
os outros que é por sexo, chamem-lhe até maluca como fazem, ela sabe que o não
é – Queria um companheiro e gostava muito
de gostar! - Por isso, não hesitara em se entregar à paixão intensa que
durou quatro anos - Primeiro foi como se de um filho se tratasse, era um
moço de dezoito aninhos, andava aí com o meu Zetó (e mostra a fotografia
dos dois jovens). Depois foi gostar
demais e ainda gosto tanto que… - a boca se emudece. Resvalam-lhe as mãos
em desespero pelos cabelos desalinhados, até que o rosto se encobre e Olívia
murcha.
Mais
do que por falta de água e de dinheiro, pela pouca roupa do Paulino, pela muita
ausência das filhas ameaçadas de morte, o coração de Olívia estremece, o rosto
crispa-se e a voz turva-se, perante a privação de um amor traído pela idade e
pela lonjura.
- Pedroso
fica a léguas da França!
A
distância e o ciúme haviam sido penosos demais e a alma quisera perder-se.
Gasto por uma vida de dura sobrevivência, nove filhos, quatro pais (companheiros)
e muitos desamores, o corpo projectara-se sem dó da janela de um terceiro
andar.
O
corpo sobreviveu, quer o quisesse quer não. Quanto à alma, permanece
acorrentada a mágoas e medicamentos que as afogam e a deixam submersa… quantos
mais, melhor!
Olívia
arrepia-se na saudade daquele que ainda lhe enche e lhe esvazia o pensamento,
lhe esquenta e lhe gela o sangue no corpo, num permanente estado febril.
Sobrevivente de um terceiro piso, não resiste ao flagelo das memórias e da
carência.
Olívia
vegeta, rodopiando em queda livre.