À
primeira vista julgar-se-ia que nos seus 43 anos de cegueira, estaria já
habituada a estar “de luz apagada”…
Ainda
era bebé de colo, quando os pais se aperceberam que aquela menina deles nascera
desprovida do sentido da visão. Em contrapartida, Aurora fora dotada de um
forte sentido de vida, plena de energia, ávida de exercitar toda a sua
curiosidade e traquinice. Queria ver tudo o que podia ver e absorvia o que não
vendo, resgatava pela alegria de lidar com as coisas simples do seu quotidiano rural,
do convívio com novos e velhos, convencida no seu ingénuo entusiasmo, que os demais
viam como ela e ela como os demais. Não percebia a noção de cegueira, pois se
via o azul do céu casado com a montanha que acolhia a sua aldeia no regaço; se
os caminhos empedrados que calcorreava e os campos onde brincava, soavam a
chocalho e cheiravam a bosta de boi… Crescer era um jogo divertido, com provas
que lhe desafiavam a atenção e o engenho - Senhora
professora deixa-me ler agora a lição? - Enquanto na sala de aula outros
colegas soletravam o texto, Aurora decorava-o e quando o tinha bem na ponta da
língua, já se achava em condições de exibir os seus dotes de leitura. E a
professora rendia-se à inteligência daquela aluna tão especial.
Todos
gostavam da pequena Aurora e se mesmo sem o dizerem lamentavam a desgraça da
sua cegueira, logo se animavam com a graça que brotava da sua alma e se espelhava
no rosto de criança feliz. De traços miúdos e delicados, pintalgados de umas
quantas, muitas sardas malandras, tinha um rosto para além de bonito, garoto. E
os cabelos faziam o resto: revestidos de um brilho acobreado, saltitavam em milhentos
caracóis que riam como a menina e com ela.
Tinha
nove anos quando a família simples e humilde, atenta e aconselhada, se
convenceu de que era chegada a hora; Aurora tinha que os deixar, submeter-se
aos progressos da cidade, aos conhecimentos dos professores e doutores. Já
numeroso, o rebanho familiar tresmalhava com o desvio e ausência daquela
cabritita endiabrada, mas por seu bem. Por seu turno, Aurora entendeu que era
um jogo novo em que seria a primeira a entrar – Primas! - O desafio: deixar os montes da sua aldeia, rasgar o
horizonte rumo ao sol poente, descer com ele até ao mar e à cidade grande.
Viria
a perceber que mais do que transpor os limites da sua pequena geografia, se
tratava de apreender os seus limites enquanto cega, aprendendo numa escola
especial funcionalidades para além da visão. Passou repetidamente a
confrontar-se com o diagnóstico de “cegueira congénita total”. Total, porque os
resíduos de visão que exibia não chegavam para ultrapassar a fasquia da visão
nula na categorização médica. No entanto, em bom pormenor, uma palavrinha se
impunha em acréscimo ao desalento do grau nulo e rematavam com “quase nulo”.
Um
quase nada que fazia toda a diferença. Aquele reduzido domínio visual era
tesouro seu. Permitia-lhe daí atingir o resto: abrir o baú das sensações e das lembranças
e então encher um saco sem fundo de emoções. Era a achega que precisava para se
sentir mais parte do todo e comentá-lo. E como ela, já adulta fazia questão
disso! Tudo lhe servia para mostrar que não estava excluída do mundo dos que vêem.
Melhor, Aurora pertencia ao universo daqueles que aceitam os estímulos visuais como frutos. Colhem-nos e
saboreiam…
Aurora
gostava do riso e das crianças que cativava com espontâneas habilidades. Mesmo sendo
suas desconhecidas, logo lhe aderiam numa serena cumplicidade de momentos bem
partilhados. Adorava cantar e fazia-o no grupo folclórico da sua aldeia. Instalada
na Invicta, sempre que podia viajava até à serra para fins de semana de retorno
aos rituais simples do mundo rural da sua infância.
Amava
a luz, ou não fosse o seu nome – Aurora - a luz de cada dia que começa e os
seus olhos sequiosos dela. Não se cansava de elogiar a presença mais suave ou
mais intensa do sol e de barafustar com a sua ausência, face ao cinzento dos
dias enevoados ou chuvosos. Gostava da Primavera e das flores que lhe
intensificavam os sentidos e em cada ano lhe renovavam as surpresas: a macieza
das pétalas de magnólia nas pontas sensíveis dos seus dedos; a fragrância das lantanas
a seduzir-lhe o olfacto namorador; o rei sol a trespassar a vidraça, desafiando
aqueles olhos como súbditos para a luta, num esforço aguerrido de visão.
Comentava o bonito e o gracioso num arranjo floral, numa peça decorativa, na
combinação de peças de vestuário. Não era só pelo olhar apurado do tacto, era pelo
seu olhar!
Nunca
eu conseguira perceber até que ponto aquele seu olhar tão especial atingia a
objectividade das coisas ou se lhe chegavam projectadas de dentro, da sua
personalidade sensível e apurada. Até que subitamente o olhar de Aurora a
traiu; a visão toldou-se e após semanas e meses de consecutivas consultas e de ensaios
medicamentosos - Um filtro azul escuro, não é o azul do céu
- lhe invadiu o horizonte visual, apagando-lhe a claridade e negando-lhe a
diversidade.
Ainda
que fosse definido como pouco, muito pouco na avaliação médica especializada,
esse quase nada era muito. Era tudo para Aurora! Ver esse seu horizonte
reduzido, ou seja, deixar de o ver, era então uma ameaça angustiante: o
pesadelo de uma perda irreparável, irreversível. Esse olhar que agora a traía, resgatava-lhe
a vitalidade, assustava-a e vinha apagando a sua natural alegria, mingando a
sua participação. Calada no seu canto de trabalho junto à janela, parecia mais
pequena e murchava como se de uma flor sem luz se tratasse.
Julgar-se
que aos 43 anos estava habituada ao escuro, era engano. Incapacidade dos que
fazendo pleno uso das respectivas capacidades visuais, não enxergavam que
Aurora via o que dizia ver: formas vagas, cores e luz. Via-as na sua e na nossa
realidade, na contingência dos seus olhos.
E
agora Aurora?
-
Agora… foi como se tivessem apagado as
luzes!