A
figura seduzia numa intensidade de extremos. Grande mas delicada, exótica e no
entanto suave, inspirava coragem bem como desproteção, resistência mas especialmente
ternura…
Tanto
antagonismo era todo coerência num corpo e num coração enormes de mulher,
traída pelo homem e pelo destino. Nunca lhe ouvi desenvolvidos ressentimentos,
nem para com o pai dos filhos, nem para com o pai da sorte (ou do azar),
agarrada que estava com todas as forças à sua imensa condição de Mãe. Muitas
vezes Mãe, com quanta veemência e dor.
O cabelo curto mas aberto em largos caracóis
emoldurava-lhe um rosto amplo, sereno, de traços bem talhados. Os olhos arredondados
mas longos, sublinhados por espessas pestanas reviradas, deixavam que o verde esmeralda
que neles luzia revelasse inconfidências; o seu interior bom e o mal que lhes
era exterior, a força e a fraqueza contidas. Aquele olhar projetava uma beleza
externa com impacto e brilho de capa de revista. Refletia a da alma… somente para
outros pares de olhos com coração.
Espantosa mulata, sem sombra de dúvida. Parceiro que a abandonasse não podia ser boa rês! Mas ela tendia a poupá-lo de culpas. Na versão mais generosa, o seu homem fora à procura de melhor sorte por terras brasileiras. Apostara em mudar o destino e caíra na própria armadilha; não que tivesse abandonado mulher e filhos, simplesmente levara sumiço em terras de além-mar. Perdera-se sem deixar rasto. Quando mais afundada na solidão e no infortúnio, a mesma história ganhava na boca de Natividade o sabor amargo de aventura à toa, senão mesmo de fuga daquele que se esquecera de enviar notícias. Nem uma carta para atravessar o imenso mar da vida que deste lado continuava em jeito de naufrágio, de luta pela sobrevivência, também de oração. Do lado de lá, tudo era imaginável na vertigem da distância, da selva das árvores e das favelas, das brasileiras sensuais e do samba inebriante. Tanto tempo decorrido e tamanha espera em vão. Ficara só nesta margem, com os filhos. Essa era a realidade, o seu património, certeza e contingência.
Quantos
filhos? Mais que a meia dúzia. Edmundo valia por muitos, não no que esta mãe necessitava,
dois braços de homem para ajudarem e a abraçarem, mas porque dependia
inteiramente dela ou de outros corpos prestadores dos cuidados mais elementares
e mais complexos. Esse filho sempre dependera e dependeria de outros corações
capazes de transbordar de afeto e dedicação.
Edmundo
tinha uma Paralisia Cerebral grave. Prisioneiro de uma cadeira de rodas mas
mais ainda de uma multideficiência cruel, a vida negara-lhe qualquer tipo de
autonomia. Crescera incapacitado a todos os níveis, todos! Podia-se acreditar
que num corpo como o daquele adolescente, só a alma seria domínio seu, já que
também o pensamento... que instrumentos possuía para voar?
Quem
sabe, se esse filho tão especial quanto excecional, não fora o motivo de
abandono da bela mulata sua mãe, pelo homem seu pai. Certo era que ela não o
abandonaria nunca, e por aquele filho, mais ainda do que por todos os outros,
faria das tripas coração - até sempre! E sempre é muito tempo,
mas mulata como aquela devia ter tripa comprida, a avaliar pelo coração sempre
em crescendo, refletido no verde límpido do olhar.
Natividade
fora enredada pela dureza da vida, na luta pela subsistência e criação da filharada.
Fora feita cativa do apoio permanente a prestar àquele seu rapaz grande, sempre
bebé, sujeito a mil cuidados de reabilitação. Os técnicos sabiam que não era
disso que se tratava, mas de evitar deformidades e chagas; de todas as incapacidades,
reduzir algumas, complicando na panóplia de ajudas técnicas, numa procura
inventiva de “melhor” qualidade de vida, para ele e para os seus cuidadores.
Até
sempre,
era um tempo previsivelmente frágil. A estrutura respiratória daquele filho de
Deus não era ajustada à sua condição de humano, filho de Natividade. Talvez pudesse
ser suficiente a um anjo… Por isso, como por tudo mais, a Mãe fazia da
prestação dos cuidados uma prece de cada dia, muitas vezes ao dia. Até que num
deles, no ato da alimentação, o sopro mais básico da vida foi interrompido, atraiçoando
o corpo e deixando que a alma se desprendesse. Quem sabe se então mais feliz
que nunca, nessa circunstância vibrante e livre, numa dimensão que provavelmente
sempre fora a sua.
Até sempre, transformara-se num tempo eternamente gravado e guardado na alma da grande e bela mulata –Mãe.
Viria
a revê-la na lide de vendedora por feiras do grande Porto - Peitos cheios e firmes, venha ver freguesa!
– O pregão atraía à banca dos soutiens com postiço e de outras peças de
roupa interior - Meias rendadas e calcinhas
fio dental, tudo muito sexi! - Atraía-me a mim o rosto exótico e familiar, a
cumplicidade do que nos fizera cruzar na vida: um menino grande e frágil, o
seu, no seio de muitos outros que respeitosamente testemunhei.
Alguns,
bem como algumas delas - as Mães- gravaram-me na alma registos profundos de uma
linguagem que dispensa a palavra. Pura empatia, partilha-se em silêncio e
guarda-se para sempre!...
Na
feira, a energia parecia dos pregões, mas era silenciosamente dela. Mesmo sem
eles e sem Ele - Edmundo- presente, Natividade mantinha a sua aura intensa e
delicada ao mesmo tempo.
O
tempo, já se encarregara de instalar os seus vincos no rosto dela. Vínculos da
adversidade da vida e muitos outros de uma saudade, até sempre especial.